Uma Era em Tons de Cinza

Pichação_João_DoriaLancei esta semana uma pergunta no Facebook sobre a ação do atual prefeito de São Paulo, João Dória, em pintar Grafites urbanos de cinza, apagando-os. Se esta ação não poderia ser categorizada como crime.

Depois de algumas especulações por parte de vários, a resposta positiva logo apareceu, até da grande mídia. Obviamente não versarei apenas sobre o crime em si, que sob a luz dos que amam arte, viceja até como crime de lesa-pátria. Vou falar da arte urbana, do Grafite, que precisa de uma nova leitura e uma preocupação com a sua conservação.

Por que motivo preocupar-se com sua conservação?

O Grafite como arte que usa os muros, a rua como local de exposição, torna-se refém do cansaço cotidiano, das intempéries naturais e do dia a dia. É comum um grafite ser trocado por outro. Tornou-se uma arte efêmera. Em seu DNA, essa efemeridade é até bem vinda, pois “telas” nos grandes centros urbanos e até mesmo nas periferias tornam-se escassas com o tempo. Porém, é inegável o poder atrativo e de comunhão que o Grafite tem, o de unir o morro ao asfalto, o excluído com o abastado (que obviamente aceita o Grafite como arte genuína que é).

Já ouviram falar do Beco do Batman?

foto-beco-do-batmanAntes um lugar comum, degradado, hoje é visto como um dos principais pontos turísticos

da Vila Madalena, em São Paulo. Há visitas guiadas, as ruas foram fechadas para carros aos fins de

semana e se tornou uma verdadeira galeria a céu aberto. A arte, em sua base mais tradicional, tem

como poder a inclusão, a soma. Criou-se até um código de ética entre os grafiteiros. O grafite é a

bola da vez. Oriunda das pichações que degradaram centros urbanos e era uma verdadeira guerra

entre moradores que queriam as suas casas belas e pintadas, hoje o que se vê é o outro lado da

história. Na Inglaterra, ter o muro expondo um Banksy é um luxo. A valorização daquele imóvel é

impressionante. No entanto, arte está além de questões financeiras. O grafite hoje transcende o

olhar sobre a cidade.

É preciso rever essa questão efêmera, temporária do grafite.

Imagine se essa efemeridade às poesias urbanas tomasse um outro rumo, uma outra

proporção.

Profeta-GentilezaAqui no Rio temos as famosas pinturas e palavras do Profeta Gentileza. Com o fim da

Perimetral, para dar espaço à revitalização da área do Porto, esses dizeres foram mantidos. Claro,

muito da memória urbana se perde com o fim da Perimetral, mas a reintegração do povo àquele

espaço é inegável.

 

A arte arquitetônica deu espaço às pessoas, à sua comunhão. Ali mesmo, há o mural do grafiteiro Kobra. Arte efêmera também? Esperemos que não.

mural-kobra-completo

E o que dizer da Escadaria Selaron na Lapa, no Rio de Janeiro? Saber cuidar da arte que se produz é legar a gerações futuras o total conhecimento sobre aquela época, aquele período. Por isso, deve-se repensar a questão da temporalidade das obras de Grafite. Algumas, com inegável valor histórico, precisam ser tratadas com mais apego.

A ação do Dória pode nos propor várias outras leituras. A daqueles que não aceitam a intervenção das periferias como formas genuínas de se criar arte. O funk, por exemplo, entra nesse prisma. Como expressão, o funk tem o seu espaço garantido no panteão da arte. O fato de uma parcela da população não a aceitá-la por o funk ser usado a divulgar a criminalidade, a supersexualidade em um estilo conhecido como Proibidão não torna o estilo de música um crime propriamente dito.

Em uma época como a nossa, em que o senso de retrocesso parece cada vez mais explícito, lutar por uma arte acolhedora e de integração parece ser um ponto para se comungar.

Espero que esta ação do Dória, tão criminosa em um primeiro ponto, possa dar espaço a uma discussão saudável sobre a criação de galerias urbanas a esses artistas do grafite. Juro que acho lindíssimas todas essas pinturas. Elas reinventam o ser humano, liquefazem nossas percepções, transformando-se em uma profusão de cores e gestos que alimentam de paz nosso dia a dia. Amo dirigir às escolas em que dou aula e ficar namorando essas paredes, tão bem pintadas, tão belas, felizes, em sua declaração de mensagem e apego ao belo. Toda arte é catártica. E trazê-las para o mais simples do cotidiano deveria deter de nós o respeito ao eterno.

Fujamos do cinza de antes, dos atuais cinquenta tons e desta tentativa merencória de potencializar de tristeza monocromática a Selva de Pedra. Precisamos mais do que isso.

Fontes:

http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/05/beco-do-batman-e-fechado-para-veiculos-e-tem-iluminacao-reforcada.html

https://pt.wikipedia.org/wiki/Beco_do_Batman

http://oglobo.globo.com/rio/rio-450/pinturas-de-gentileza-vao-ser-mantidas-com-desmonte-do-elevado-da-perimetral-13283522

http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/07/zona-portuaria-do-rio-vai-ganhar-mural-de-3-mil-metros-quadrados.html

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.