Às Quartas – Ruínas turcas

Foto: Teatro greco-romano em Hierápolis (arquivo pessoal da autora)

 

Nas ruínas de Hierápolis, pensei: lugares históricos têm alma. Uma aura envolve onde heróis e vilões caminharam. No céu, as mesmas estrelas se organizam sobre os planos de vida do presente, como no passado.

De Hierápolis, pouco sabia. Os cochinhos dos habitantes e os trotes dos cavalos, imaginados, não instigaram um arquivo de memórias construídas. Mas me deslumbraram a longa e branca extensão de calcário, a Piscina de Cleópatra, e o gigantesco teatro, em cuja arquibancada me sentei.

Diferente de Troia: cada passo me remeteu a arquivos tanto históricos quanto mitológicos. Uma rampa de pedras pela qual se subia do mar à cidade: teria passado, ali, o Cavalo de Troia? As camadas de muralhas: quantas ultrapassadas por homens e por mitos?

Troia é lendária mas real. No sítio arqueológico, fazem-se presentes as brigas históricas e as cenas da epopeia. Ouvi os cavalos e os gritos da gente que por ali passou. Até a brisa, assanhando as folhas da figueira, trouxe um ar espiritual ao cenário de pedras sobre a qual ergui construções.

Um dos berços do mundo. Lugar existente na imaginação de todo homem, no que consome aventuras de deuses e semideuses, no que ama as raízes da literatura, naquele que se debruça sobre a História para aprender, através das marcas deixadas, as direções no futuro.

Foto: Casa reconstruída da Virgem Maria (foto da autora)

Mais emocionante foi a Casa da Virgem Maria. Pisei a terra do seu caminho de refugiada, perseguida em razão de sua crença e de sua história, mãe do deus/profeta/homem que influenciaria os conceitos éticos e caridosos do mundo inteiro.

A casa é reconstrução. Só poucas pedras são originais. Há uma cisterna enorme no arredor. Três torneiras de água potável, bebida pelos visitantes, acreditando ser sagrada. Um muro onde se penduram pedidos à Virgem, formando um mosaico de caprichos: diferentes letras e papéis; uns enrolados, outros abertos; alguns protegidos por embrulhos; palavras apagadas pelas chuvas; uns bilhetes caídos no chão, mal presos ao nó que os amarrou. A fé enternece, ao expor a fragilidade humana.

A energia do local é palpável. A consciência desperta e a marcha das centenas de pessoas na área, com pedidos ou agradecimentos. Há apelo emocional, mesmo entre turistas tirando fotos e comprando lembranças.

A casa fica no alto de uma colina. Maria, como outros cristãos, se escondia, temendo sofrer penalizações por sua crença. Teria chegado a Éfeso com João Evangelista, a quem Jesus, na cruz, entregou a mãe. Naquela montanha, se refugiou.

Foto: Casa reconstruída da Virgem Maria (foto da autora)

Os primeiros cristãos foram os refugiados de ontem. Na Capadócia, vimos as Chaminés de Fada, as cidades submersas, as grutas espalhadas nas montanhas rochosas da região, onde se entocaram. Os cristãos eram os expatriados, os perseguidos, a serem mortos ou presos por suas crenças. A perspectiva me vem e sensibiliza: com que frieza julgamos o movimento dos refugiados, hoje, buscando uma janela para sua liberdade?

Um detalhe comovente: o local é sagrado também para os muçulmanos. Maria é citada em alguns versículos do Alcorão como a mãe do profeta Jesus, uma mulher pura. Muçulmanos não a adoram, mas a têm em alto grau de respeito. Os jardins de sua casa talvez sejam o único lugar no mundo em que muçulmanos e cristãos rezam juntos.

Nascer do sol num balão voando sobre a geografia. Por do sol num passeio de quadriciclo entre as montanhas rochosas. Paisagens únicas. Capadócia, ruínas de Éfeso, Troia, mesquitas lindas, com, até, seis minaretes, o mar em Istambul. Passeio maravilhoso. Centenas de fotos, histórias pra contar. Uma boa impressão da Turquia.

Mas em Maria, símbolo plantado no seio de um país muçulmano e patriarcal, se concentram referências fortes da humanidade: a maternidade, o serviço à fé professada, a gestação do homem divino, a pureza, o exemplo de luta e coragem. Acima das religiões, ela é a força e a ternura de toda mulher, o coração do mundo. E nada, absolutamente nada, se comparou a pisar o mesmo chão que Maria pisou.

ANA LÚCIA GOSLING

@analugosling

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

2 comments

  • Comovente e intenso! Fico maravilhada por suas palavras descrevendo as impressões de um país com tanta história como a Turquia, notadamente a casa onde Maria pisou! A força de todas as Marias mães,.a força da mãe Maria, sua mãe. Bjs

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  • A leveza com que a Ana transforma as emoções em palavras nos encanta. O relato materializa para o leitor o espaço visualizado pela autora com imensa precisão. Parabéns pela beleza.

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