“O Cidadão Ilustre” e a arte como caminho para uma nova realidade

Um dos melhores filmes a que assisti em 2017 foi, sem dúvida, “O Cidadão Ilustre”. O filme argentino, dirigido por Mariano Cohn e Gastón Duprat e protagonizado pelo ator Oscar Martinez, que foi, inclusive, premiado pelo papel, possui uma narrativa muito bem escrita, em que se misturam, perfeitamente, humor e crítica a uma trajetória do personagem, questionadora e reflexiva acerca do papel do escritor e, em larga escala, do artista em si. Resumidamente, é a história de um escritor que, após ser agraciado com o Prêmio Nobel, é convidado a voltar a sua cidade natal, no interior da Argentina, para ser homenageado com o título de “Cidadão Ilustre” e participar de alguns eventos comemorativos do aniversário da cidade.

Sob o ponto de vista estrutural, é um filme perfeito. Sob o ponto de vista interpretativo, abre várias frentes de discussão interessantes: a hipocrisia da sociedade, a superficialidade das relações com o universo artístico, a construção do herói, a fama e o sucesso como elementos fugazes, o papel do escritor, o quanto sua vaidade enriquece ou põe a perder seu compromisso como artista. E por aí vai.

Para esta coluna, interessa, principalmente, a abordagem da Literatura no filme, a maneira como o protagonista atravessa essa história construindo uma ideia muito clara do que idealiza como projeto artístico ideal.

A estrutura narrativa do filme em si, através da qual se constrói uma história dentro de outra história, já traria elementos muito interessantes para analisarmos em relação à escrita literária e como se entrelaçam os papéis do autor-personagem. Mas isso nos obrigaria a descrever aqui uma série de “spoilers” que comprometeriam muito o efeito do filme.

Repouso, portanto, minhas observações sobre o que se diz acerca da Literatura no filme, sobre o tratado literário exposto na fala do protagonista que nos provoca, todo o tempo, a pensar no que leva alguém a escrever (e, de forma abrangente, a produzir arte) e que papel sua obra deveria ter no mundo.

Na primeira cena do filme, o personagem se coloca de forma bem clara em relação a isso. É um soco no estômago ouví-lo agradecer a premiação recebida (o Nobel de Literatura!) e a dizer que isso lhe provoca alegria mas também tristeza por ter a consciência de que “o reconhecimento unânime está direta e inequivocadamente relacionado ao declínio do artista”. Ali, ele afirma de cara que o papel do artista é o de provocar, instigar e que ser uma escolha unânime revela um consenso sobre sua obra que o aflige. Ele continua: “só se torna vencedor destes prêmios, os artistas que não tiveram a audácia necessária para exercer sua verdadeira função, que é a de incomodar e questionar as incoerências do mundo”. A revelação dessa verdade aflige também o espectador do filme diante da cena, criando-se um longo silêncio na tela e na sala em que assistimos ao filme, num constrangimento que, após, na ficção, desembocará em aplausos. Nesse momento, não se pode adivinhar que o filme se abrirá, ainda, em momentos risíveis e dramáticos e, pode-se dizer, até de suspense ao final.

Daniel Montovani, o personagem principal, é um escritor argentino que vive na Europa há décadas e perdeu o vínculo com a cidadezinha natal. É ligeiramente arrogante, vaidoso, e chega a dizer que acha que passou a vida inteira tentando fugir de suas raízes. No entanto, construiu sua obra a partir de diversas histórias testemunhadas na sua infância e adolescência na tal cidade, retocando-as com as ferramentas necessárias para que virassem enredos literários.

A volta à cidadezinha me pareceu uma metáfora da própria trajetória que, como escritor, o personagem precisaria fazer. Incomodado com o caráter supostamente cômodo da sua escrita, ele volta à origem não só da sua vida mas do seu despertar literário, do próprio lugar que serviu de inspiração às histórias que o consagraram.

Lá, ele é esperado como celebridade mas vê sua escrita reduzida a nenhum significado quando, perdido no caminho com o motorista que o buscou no aeroporto, precisa rasgar as páginas dos seus livros para acender o fogo para sobreviver ao frio da noite e, pior, para serem usadas como papel higiênico. Imagem fortíssima que sugere a própria desconstrução da sua obra ou do valor artístico da literatura que produzia.

Numa entrevista concedida, o personagem diz que o escritor é alguém que escreve porque não se conforma com a realidade. É uma ideia que ganha uma forma ainda mais bonita quando ele diz que a maioria das pessoas se conforma de viver no mundo em que vive mas que, talvez, o escritor seja, por natureza, um inconformado que precisa escrever para criar um outro mundo – para ele, melhor e mais perfeito do que o real. Sua fala é interrompida pelos comerciais da radio e ele não se demora em frente ao microfone porque, na fictícia cidade em que se passa a história, ele é uma celebridade enaltecida e idolatrada a partir de sua premiação, mas poucos cidadãos, de fato, se debruçaram sobre seus livros e, entre os que os leram, poucos os compreenderam verdadeiramente.

O tal mundo imperfeito o interrompe, a realidade o abraça e fecham-se os ouvidos às palavras que ele precisa dizer e que, talvez, precisem ser escutadas. Não só nessa passagem mas nas cenas que mostram suas palestras em salas de aula cada vez mais esvaziadas, após uma eufórica estréia ciceroneado pelas autoridades do local. Nas aulas, em que ele tenta construir um pensamento crítico sobre o que seria Literatura, muitos ruídos o interrompem ou o distanciam do objetivo. Mas para nós, que somos os alunos fora de cena, suas palavras se destacam. Diz “toda verdade é fruto de uma interpretação” e você, como espectador, precisa ter essa ideia à mão ao atravessar várias cenas do filme para entender que as relações entre os demais personagens e o protagonista se dão a partir da interpretação que eles criaram a partir da leitura de seus textos.

Há um, por exemplo, que demonstra gratidão imensa pelo fato de seu pai ter sido retratado no livro, fato de que o autor sequer se lembra, afinal, não homenageara o tal pai, mas transformara uma vaga lembrança de infância num personagem. Há outro que insufla a plateia de alunos contra o escritor gritando “toda a obra desse milionário está montada sobre calúnias sobre nossa comunidade”, sem entender que há nuances interpretativas e há criação sobre os fatos que o inspiraram a escrever e que se ele é ou não fiel ao retratar um fato real, isso é uma escolha autoral.

Para quem gosta de ler e escrever, isso suscita muitos questionamentos acerca dos caminhos que, como leitor e/ou escritor, percorremos. Muito se diz do quanto confundir a vida do autor e o texto que ele produz é um elemento que diminui a obra porque restringe significados. Mas quanto ainda se confundem vida e obra, às vezes com certo embasamento, noutras com total falta de conexão? Certo é que, por mais que o escritor tenha um objetivo e uma ideia formada na cabeça, seu texto ganha asas e provoca no leitor significados sobre os quais o autor não tem controle, para o bem e para o mal. No caso do protagonista do filme, esse é o efeito esperado – é a liberdade do pensar e a provocação que a arte traz que a ele interessam, que justificam seu trabalho.

Isso fica ainda mais claro quando o personagem principal responde a um jornalista, que tenta fazê-lo confessar que uma determinada situação é real: “o que isso importa?”. Não importa. Importa o que se constrói na mente do leitor, o quanto aquela ideia agita sua imaginação; importam seus pensamentos sobre a realidade. O fato em si, não. Ele exibe uma cicatriz e diz algo como: “Foi um tiro? Foi um tombo? Que importa?”. É forte, direto, contundente. Toda verdade é pura interpretação, lembramos, de antes.

Embora estejamos falando de ideias bem específicas sobre arte aqui, o filme nem de longe é intricado ou obscuro. Ao contrário, é simples dizer. A película se desenvolve fácil pela tela, as situações cênicas são simples e, muitas vezes, propositalmente hilárias. É um filme delicioso, que diverte e que faz pensar. Muito. Que expõe a superficialidade da sociedade e a mediocridade de pensamento; o dinheiro e a política se sobrepondo à intenção artística; a adoração vazia às celebridades e a inversão das paixões ao sabor do vento: o adorado hoje é expurgado amanhã. Mas que conta sua história de forma natural – embora, valha dizer, sua narrativa tenha complicações e amarrados bem especiais que, propositalmente, liga citações estratégicas a situações de clímax no filme, como toda boa narrativa deve ter.

Natural, como a elogiada escrita do recepcionista do hotel em que o protagonista se hospeda e, após ler os manuscritos que lhe foram entregues em busca de uma opinião profissional, tece elogios ao rapaz e, entre eles, o de que sua escrita é simples. Então, ele diz uma frase de impacto: “nada é mais generoso do que escrever com simplicidade”. Eu, como escritora, me emocionei de verdade ao ouvir isso. Sabendo que o “escrever simples” não é objetivo fácil de ser alcançado.

Àquela altura, já tinha entendido e aprovado todo seu projeto literário: a Arte ao alcance de todos, sem, contudo perder seu traço artístico. Simples, para dizer o que precisa ser dito. Provocativa, para obrigar o mundo a movimentar-se. Abrindo caminhos para a invenção de uma nova realidade. Sem que se perca a perspectiva de que tudo o que existe a nossa volta, todos os textos, todos os filmes, todas as nossas relações, o mundo inteiro, existe para nós a partir da nossa interpretação sobre tudo.

Filme imperdível. Assista se você, como eu, ama literatura. Há muita coisa dita que você precisa escutar. E se você gostar “apenas” de filmes, assista também, pela história em si. É cinema bom na veia!

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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