CONTO DE QUINTA: a partir de hoje, sempre às quintas-feiras, vamos publicar um conto de nosso colunista César Manzolillo. Confira o primeiro: “Simulações”

“SIMULAÇÕES” 

Ninguém sabe de quem foi a ideia, que ganhou força quando chegou aos ouvidos do meu avô Nélson. Ele logo organizou as coisas e dividiu as tarefas. Os responsáveis pela criação do primeiro episódio seriam meu pai e meu tio Mário. Estavam todos lá na segunda reunião, realizada no casarão do Cosme Velho, que, ao longo das últimas oito décadas, assistiu a incontáveis momentos importantes na vida dos Bandeira de Assis. Abertos os trabalhos, meu pai fez uso da palavra. Explicou que havia pensado em algo impactante. Uma moça, por volta dos 20 anos, andando sozinha na Praia do Flamengo seria assaltada e em seguida estuprada por dois marginais. Alta madrugada, iluminação deficiente e local deserto ajudariam a compor a cena. Minha tia Clarice adorou a ideia e sugeriu um tom explícito. Completou que as imagens nada deveriam ficar devendo à realidade. Minha prima Cecília acrescentou que, já no final da ação, a polícia deveria chegar sem nada conseguir resolver. Aliás, seria ótimo se os policiais terminassem mortos pelos bandidos, opinou ela, levantando da cadeira e agitando os braços finos com entusiasmo. Meu tio Mário, calado até aquele instante, foi enfático: Muito sangue! É preciso que haja muito sangue! Os presentes agitaram-se, um burburinho tomou conta da sala. A reunião seguia, o contentamento era geral, e uma excitação perversa contaminava o ambiente. Meu avô ia aprovando tudo com discretos acenos de cabeça. Na sequência, pediu que meu primo João e minha irmã Lígia falassem a respeito do segundo episódio. Pelo que pude perceber, a ideia partiu dela. Algo bem semelhante havia acontecido com a bisavó de uma amiga sua. Uma senhora nonagenária saindo de um banco. O cenário era o Méier, tradicional subúrbio carioca, habitado por uma classe média falida. Dia claro e ensolarado, uma gangue de pivetes surgiria de repente, derrubaria a velhinha no chão e roubaria todos os seus pertences. Ela gritaria desesperada, sua voz fraca e rouca, quase inaudível, não lhe seria de muita serventia. A fim de tornar tudo mais dramático, seria importante que a protagonista acabasse morta. Mais uma vez, alguém  ̶  acho que meu primo Murilo   ̶  propôs que a polícia se mostrasse inepta, incapaz e inábil. A essa altura, todos estavam ansiosos para ouvir a terceira sugestão, esta a cargo de minha avó Raquel e do meu primo Carlos. Linchamento! Linchamento! Foi assim, gritando juntos, que os dois começaram a expor a proposta. Mercadinho de bairro em Bangu, na zona oeste. Jovem maltrapilho, um típico morador de rua, seria a figura central nesse caso. Faminto, o adolescente roubaria dois pacotes de biscoito. O segurança da casa comercial, atento, se apressaria em cumprir sua função. O meliante sairia correndo. No entorno da loja, transeuntes começariam a gritar Ladrão! Pega ladrão! Meu tio Rubem se preparava para fazer comentários quando tiros foram ouvidos em frente à nossa casa. De forma instintiva, muitos dos presentes se levantaram, atravessaram correndo o jardim e alcançaram o portão. Estendidos na rua, emoldurados por poças de sangue, os corpos de quatro homens. A polícia apareceu alguns minutos depois.

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

3 comments

  • Ótimo! A vida imitando a arte, ou o contrário… nunca saberemos.

  • Um conto onde o momento impactante é a própria vida . Gostei muito! O autor mistura com maestria , a possibilidade da realidade com a ficção, de tudo ficção ou tudo realidade.
    O leitor decide. Aplausos para César Manzolillo!

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