CONTO DE QUINTA: O último dia

Foto: Inti Ocon/AFP – 11/12/14

 

O ÚLTIMO DIA

O dia ainda não havia amanhecido quando o rádio anunciou neve no mês de novembro pela primeira vez no Brasil. Naquela mesma noite, por volta das 7 e 30, Fubá apareceu sozinho e inquieto ostentando uma ferida no dorso. Amália logo pensou no mau pressentimento sofrido pela manhã. Sentiu-se culpada, achou que deveria ter tentado me impedir. Denise e Isabel ainda dormiam. Me levantei às 6, tomei banho, comi uma banana e um pedaço de pão, me servi do café preparado por Amália, dei um beijo nela e saí na companhia do meu fiel companheiro. As últimas semanas estavam sendo desanimadoras. Dragas passariam a ser usadas na busca por ouro e diamantes nos trechos mais inacessíveis. O fato é que eu não vinha conseguindo achar nada realmente valioso, capaz de compensar o sacrifício de trabalhar em condições tão desfavoráveis. Alguns dos meus colegas já haviam abandonado aquela parte do rio. Outros estavam prestes a fazer o mesmo. Consumido por dívidas, Ronaldo se matou, Salustiano se afundou na cachaça e vivia vagando pelas ruas sem propósito, enquanto Jorge e Pedro decidiram perseguir a sorte numa cidade vizinha. Eu ainda insistia. Essa situação adversa está por terminar, acreditava. Por volta do meio-dia, resolvi parar para almoçar. Na bolsa, a marmita com feijão, arroz, ovo e um bife, além de pedaços de carne para Fubá. Pus-me a repousar embaixo de uma aroeira. O raciocínio remoía os acontecimentos, e o descanso não durou muito. Minhas costas doíam, a cabeça pesava… A certa distância, via Belmiro, peneira na mão, exercitando seu ofício enquanto cantarolava um samba antigo. Deixe-me ir Preciso andar Vou por aí a procurar Rir pra não chorar… Fubá começou a latir e a agitar-se em círculos. Demorou ao menos uma semana para que os fatos se esclarecessem. Meu corpo, processo de decomposição avançado, foi encontrado encoberto pelo mato por uns moleques que soltavam pipa. Eu havia sido atacado por um tamanduá. As garras do bicho golpearam-me o tórax, causando uma hemorragia fatal.

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

Siga César Manzolillo nas redes sociais:

@cesarmanzolillo no

FACEBOOK ,

no INSTAGRAM ,

no X (TWITTER) e

no THREADS

 

 

Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:


com Ana Lúcia Gosling

com César Manzolillo


com Tanussi Cardoso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

One comment

  • Gostei do estranhamento que causa com a mudança do tempo da ação no início do texto. Esse fim “absurdo” mergulhando o leitor no imponderável. Uma narrativa curta e seca, tornando a história dura e o fim mais surpreendente.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *