CONTO DE QUINTA: O dia do aniversário

O DIA DO ANIVERSÁRIO

 

Doze horas em ponto, os sinos da igreja de Santo Antônio de Pádua anunciavam. No dia em que completava 50 anos, Joel saiu apressado do escritório do advogado e, ainda dentro do elevador, passou a organizar mentalmente as tarefas da tarde. Memória privilegiada, sua melhor agenda sempre foi a própria cabeça. Era quinta-feira, e apenas no sábado uma celebração ocorreria. Reunião modesta, só para os mais íntimos, como se costuma dizer. Afinal, nunca gostou mesmo de comemorar aniversários. Ficar mais velho não é fato que mereça ser festejado, caramba. Mas a filha insistiu: data redonda, meio século, não se pode ignorar uma ocasião como essa. Em frente ao prédio do advogado, uma rua de grande movimento. Teria de atravessá-la antes de alcançar o metrô. Um pouco mais adiante, uma passarela de pedestres. Consultou o relógio e decidiu que não valia a pena utilizá-la. Perderia tempo e, além disso, jamais se sentiu confortável caminhando em cima delas. Os carros passando em alta velocidade lá embaixo causavam-lhe certa aflição, além de taquicardia, pernas bambas e suor nas mãos. Um automóvel vermelho vindo ao seu encontro é a última imagem de que se recorda. Veículo grande, desses projetados para uso em terrenos acidentados. Estendido ali, no meio da pista, julgou que talvez tivesse sido atropelado. Em torno de si, ouvia vozes, muitas; porém, não conseguia entender o que estavam dizendo. Homens e mulheres falando alto, mas era como se aqueles indivíduos se comunicassem numa língua estrangeira e pouco familiar, algo assim como basco, japonês ou turco. Pensou então na filha única e na festa que não aconteceria. Pensou também na pilha de livros a sua espera na estante do escritório, livros que não leria nunca. Pensou na esposa e se deu conta de que ela ficaria viúva. Bem, ao menos não seria mais necessário levar adiante toda aquela burocracia do divórcio. Pensou nos poucos amigos que tinha. Sempre fora um homem introvertido, reservado. Um ou outro talvez sentisse sua falta. Pensou na chefe. Pensou, sem conseguir evitar uma ponta de orgulho, que seria difícil para ela encontrar alguém capaz de substituí-lo com a mesma eficiência. Pensou nas fantasias sexuais que não teria chance de realizar. Sempre fora tão travado… Logo agora que se sentia mais solto, pronto para experimentar novas sensações… Paciência! Pensou nos pais velhinhos, companheiros de uma vida inteira, morando sozinhos no casarão de Vila Esperança. O casarão que se recusavam a abandonar, onde ele e a irmã Jane passaram a infância e a adolescência, local de descobertas e brincadeiras em companhia de primos e vizinhos, de uma vida ao ar livre que já não existe. Pensou nas galinhas, criadas com esmero e dedicação pela mãe no quintal. Nos ovos saborosos de gema escura e nos pintinhos que elas produziam. Nas brigas com a irmã pelo direito de nomeá-los. Nos castelos imponentes, construídos no jardim com terra, água, pazinhas de plástico e competência. Sua vocação para a arquitetura havia nascido ali, não tinha dúvida. Pensou ainda nas flores cultivadas pelo pai. Viçosas e coloridas, faziam os passantes pararem diante dos canteiros a fim de admirá-las. Nos pássaros de vários tipos que, sem pedir autorização, faziam morada nas árvores da propriedade. Pensou na horta atrás da casa, onde Rosalina ia buscar a salada do almoço.  Por fim, pensou em Rex, bolinha de pelos preta e saltitante, companheiro fiel e amoroso. Todo esse esforço de recordação o exauriu. Por que todas essas imagens se faziam presentes justo naquele momento? Eram muitas as lembranças a tumultuar-lhe o cérebro. Elas chegavam sem que ele pudesse evitar. Simplesmente brotavam, como a água limpa brota às vezes das pedras. Tentou esvaziar a mente, não pensar em mais nada. Sim, essa era a coisa certa a fazer. Será que depois de velho estava ficando piegas? De onde todo esse sentimentalismo havia surgido? Com a morte dos pais, a casa provavelmente seria vendida pela irmã. Seu maior desejo se tornaria realidade. Não teria dificuldades em convencer a sobrinha. Obstinada, Jane sempre acabava conseguindo tudo o que queria. No local, é possível que um edifício de 49 andares, batizado com algum nome estrangeiro, despontasse. Quem sabe um prédio comercial, com lojas e escritórios… Junto com a casa, toda a história da família iria ao chão. Em torno de si, Joel continuava a ouvir vozes e barulhos diversos. Pessoas de branco pareciam tentar socorrê-lo. Ele louvava o empenho delas, embora tivesse quase certeza de que este resultaria inútil. Inútil seria também a tentativa de impedir a irmã de vender o casarão. Talvez ela nem sequer esperasse a morte dos pais. Talvez os pusesse num asilo – ou casa de repouso, lar geriátrico, pousada ou recanto para idosos, eufemismos que designam tão somente o local onde filhos desalmados abandonam os pais. Nossa, que exagero, agora estava sendo cruel demais com a única irmã. Ela não era nenhuma bruxa, ora bolas, com toda a certeza amava os pais. Só era da opinião de que eles deveriam deixar a casa, isso sempre achou mesmo e nunca escondeu de ninguém. Era tudo muito amplo, argumentava. Nada justificava que continuasse a viver ali um casal de idosos dependentes e de saúde frágil. Sentia-se cada vez mais fraco e experimentava dores terríveis pelo corpo inteiro. Com as últimas forças que lhe restavam pensou finalmente que deveria ter utilizado a passarela, que teria sido muito bom poder reunir aqueles que o amavam em sua festa de aniversário e que uma decisão irresponsável pode transformar uma existência de forma definitiva.

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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