CONTO DE QUINTA: Amigos

Foto: WaveBreakMedia/Freepik

 

AMIGOS

 

Saí de casa por volta das 8 e meia da manhã como fazia todas as segundas, quartas e sextas, andei alguns passos e cheguei à praça. O jogo ainda não havia começado. Arnaldo, Alfredo e Ranulfo já estavam lá conversando sobre a vida alheia, um esporte praticado com afinco na nossa cidade. Aquelas reuniões com os amigos de uma vida inteira ainda eram bastante agradáveis, apesar de o carteado ter perdido um pouco da graça desde que deixamos de jogar valendo dinheiro. Foi o Alcindo, que morreu de tristeza quatro meses atrás, quem sugeriu. Essa grana faz falta pros nossos remédios, argumentou com certa razão. Afinal, somos todos aposentados e clientes preferenciais do Antônio Careca, o dono da única farmácia da região. Digo que o Alcindo morreu de tristeza porque pra ele foi um choque tremendo quando a Arlete teve um ataque cardíaco fatal enquanto via o último capítulo da novela. Convivência de 61 anos – 63 se considerarmos também o período de namoro e noivado – definitivamente não é pra qualquer um. É tempo demais vivendo junto, o que torna a coisa sempre dolorosa quando termina. Se não é pelo amor propriamente dito, é pelo hábito. Claro, costume e preguiça também são capazes de manter muito casamento por aí, mesmo nos dias hoje, marcados por tanto progresso e emancipação feminina. O fato é que exatamente 19 dias depois do enterro da patroa, coube ao Alcindo fazer a passagem, como costuma dizer o Arnaldo, frequentador convicto do centro espírita do bairro onde moramos.

– Sempre o último a chegar, hein, Hildebrando – falou Arnaldo assim que me viu.

– É o trânsito – tentei ser engraçado.

– Pois eu estava só esperando você aparecer pra dar uma notícia importante pros três – prosseguiu ele.

– Notícia? Que mistério é esse? Fala logo, homem! – impacientou-se Alfredo, o mais agitado do grupo.

– Ontem eu estive lá no centro…

– Xiiii, aí vem coisa – interrompeu Ranulfo.

– … e a dona Isaura psicografou uma mensagem do Alcindo – informou  enquanto tirava um papel do bolso.

– Como é que é? O Alcindo baixou no centro ontem? – perguntei ainda sem compreender direito o que se passava.

– E pra quem é a mensagem?

– Pra nós quatro, Ranulfo. Pra mim, pra você, pro Hildebrando e pro Alfredo.

– E o que ele diz? Vai nos contar ou não? Pra que tanto suspense?

– Calma, Hildebrando. O troço tá meio em código, linguagem telegráfica, sei lá. Mas, pelo que entendi, acho que houve um erro.

– Erro, que espécie de erro?

– Parece que a hora do Alcindo ainda não tinha chegado, Alfredo. Tá escrito aqui, deixa eu ver… “mais cedo que o programado… era a vez de um amigo… amigo da praça e das cartas… falha no controle… a melancolia ia passar… Arlete ainda não tava pronta pra me receber…”. Resumindo: um de nós quatro é que devia ter morrido.

– Quem? – os três, quase ao mesmo tempo.

– Não dá pra saber, mas o fim da mensagem deixa claro que o pessoal lá de cima está disposto a corrigir essa falha de alguma maneira.

– Ressuscitando o Alcindo? – indaguei.

– Não, isso não se pode fazer. Eles pretendem vir buscar o sujeito certo.

– Quando? – continuei.

– Pelo que diz aqui “antes que o oito vire nove”, ou seja, antes que agosto termine.

– Hoje é dia 25 – anunciei consultando meu relógio de pulso.

– E agosto tem 30 ou 31? – quis saber Alfredo, ao mesmo tempo que, mais trêmulo do que o habitual, tentava obter a resposta fazendo o teste no dorso da mão.

– Calma, Alfredo, tá achando que você vai ser o premiado? – provocou Arnaldo.

Naquele dia, não houve jogo. Cabisbaixos e pensativos, fomos tomando o rumo de casa. Em frente ao portão, ouvi os latidos do Max vindos do lado de dentro. Meti a chave na fechadura com certa dificuldade. Antes de entrar, ainda olhei pra trás e pude ver, na praça, nossa mesa habitual deserta. Aliás, contrariando o costume, a praça inteira se encontrava completamente vazia naquele momento.

 

*****

 

Bem, o 11 já virou 12, e hoje é véspera de Natal. Nós quatro continuamos vivos e resolvemos celebrar a data aqui em casa. A dona Isaura não dá mais expediente no centro. Há três meses foi internada numa clínica psiquiátrica de uma cidade vizinha à nossa, e, infelizmente, o caso é grave. São quase 9 horas, e eles devem estar chegando. Pelo menos hoje não vou ter de ouvir o Arnaldo dizer que estou sempre atrasado. Nosso amigo ausente não mandou mais notícias, e nunca mais tocamos no assunto. É bem provável, porém, que, na hora da ceia, a gente faça um brinde em homenagem ao Alcindo.

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

Siga César Manzolillo nas redes sociais:

@cesarmanzolillo no

FACEBOOK ,

no INSTAGRAM ,

no X (TWITTER) e

@cesarmanzolillo no THREADS

 

 

Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:


com Ana Lúcia Gosling

com César Manzolillo


com Tanussi Cardoso

 

 

 

Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

3 comments

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *