Como sonhar em público


2-eduardo_goldenstein_photoEduardo Goldenstein é carioca, cineasta, roteirista, diretor de TV e também professor de cinema.  

Seu contato com a tela grande começou como autor de cinco curta-metragens, sendo que o curta “Truques, xaropes e outros artigos de confiança” é considerado um destaque em sua filmografia, pois foi selecionado para os festivais de Berlim, Huesca e San Sebastian, dentre outros, e recebeu diversos prêmios, como o de melhor curta no Festival de Cinema Brasileiro em Paris.

Foi responsável pelo roteiro e pela direção do filme “Corda Bamba”, que participou de importantes festivais de cinema como o Cine PE – Recife, Ouro Preto, O Fici – Festival Internacional de Cinema Infantil – FICI, a Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis, o Seattle Children’s Film Festival, o Tel Aviv Int’l Children’s Film Festival, e o Int’l Children Film Festival India.

O longa foi premiado pelo Edital de Longa-Metragem do Ministério da Cultura e foi finalista no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2014. 

Na TV, dirigiu séries educativas da MultiRio como “Mestre do Tempo”, “Pequenos Notáveis” e “Adoro Problemas”. Agora, está à frente de uma nova série para o canal Curta, “Estados de Arte”.

Apaixonado pela sétima arte, se tornou professor de direção cinematográfica só para poder ensinar e aprender mais sobre essa mágica linguagem artística.

 

Como nasceu sua paixão pelo cinema?

Nasceu nas aulas de Filosofia que cursei na Uerj, quando me deparei com dois livros muito importantes na minha formação: “A imagem-movimento” e “A imagem-tempo”, escritos por Gilles Deleuze. Estes livros me fizeram pensar o cinema, e me convidaram a mergulhar em sua história. Esta paixão se consolidou na sala escura da cinemateca do MAM-RJ, onde pude assistir a projeções de vários clássicos. Estou falando do início da década de 90, quando o VHS já existia e era muito difundido.

Mas, a meu ver, a ida à sala escura é um ritual fundamental para quem ama o cinema.  Foi lá que pude admirar grandes filmes e diretores. E desta admiração surgiu o desejo de fazer cinema. Costumo dizer aos meus alunos que este “fazer” começa quando estamos sentados na sala escura descobrindo os inúmeros mundos possíveis que os filmes nos convidam a explorar.

 

Você primeiro cursou Direito. O que o desviou desse caminho?

Dois andares. O curso de Direito na Uerj ficava no 7º andar. Um amigo me falou de uma professor incrível na Filosofia, que ficava no 9º andar. Eu subia a rampa, os dois andares que separavam o Direito da Filosofia, e entrava numa sala cheia de pilastras, bem no canto do corredor. Lembro que a sala ficava apinhada de gente que vinha de todos os cursos, e conseguir um lugar era bem difícil, mesmo atrás das pilastras. Eram as famosas aulas do Claudio Ulpiano. Grande professor e apaixonado pela Filosofia e pela Arte (ele também adorava futebol!), contagiava os alunos com sua didática cristalina e paixão pelo pensamento. Eu já estagiava em escritório de advocacia, ia seguir a carreira, mas achava aquele mundo muito árido, sentia que não era minha praia. O cinema foi uma possibilidade de vida que se abriu para mim, uma potência criativa. Escolhi o risco – é assim com qualquer artista -, escolhi um ofício que fizesse sentido para mim.

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Qual foi seu primeiro trabalho como cineasta?

O curta-metragem “O Copista”, uma adaptação da novela “Bartleby, o escriturário”, de Herman Melville. Foi rodado em 16mm, e foi uma experiência realmente maravilhosa, de encantamento e paixão pelo fazer cinematográfico.

Me lembro de pintar as paredes da locação, e também do prazer de montar o filme numa moviola, lá no Ctav, o Centro Técnico de AudioVisual. Passei a noite no laboratório aguardando a primeira cópia sair do “forno”, esperando ansioso pelo nascimento daquele filho. A alegria de ver um filme que estava apenas em nossa cabeça ser projetado numa tela é indizível, são esses momentos de alegria que nos fazem seguir em frente.

 

A vivência com os curta-metragens é um bom treino para encarar um filme mais longo? 

Sim, claro. Mas devemos ter cuidado para não encarar o curta-metragem apenas como uma “escada” para o longa. Ele é muito mais do que isso. O curta é um formato autônomo, que traz um enorme desafio de síntese, de se contar uma história e envolver o espectador em pouco tempo. Por isso, acredito que ele deva trazer uma forte dose de intensidade. Trabalhar com o essencial. Um curta-metragem pode ser tão complexo quanto um longa – ou mais!.

O grande problema é a distribuição. Tentou-se, nos anos 2000, trazer novamente o curta para as salas de cinema mas, infelizmente, esta reivindicação não foi para frente. Por conta disso, o curta, hoje em dia, está restrito aos festivais e uma ou outra janela que se abre na TV fechada. Mas, certamente, a Internet vem se configurando como uma importante janela para o curta-metragem. O site Porta-Curtas é um dos pioneiros, e está na rede até hoje, exibindo grandes curtas de nossa cinematografia.

 

Seu primeiro longa, “Corda Bamba”, foi um sucesso. Quais foram os desafios e as maiores alegrias desse trabalho?

“Corda Bamba” certamente me trouxe grandes alegrias. Foi meu primeiro longa e, para realizá-lo, consegui me cercar de uma equipe extremamente talentosa. O filme conta a história de uma menina do circo que precisa se adaptar a uma nova realidade na cidade grande.

O imaginário circense atravessa o filme, seu colorido, seus personagens exóticos, suas alegrias e tragédias. É um filme baseado num clássico da literatura infanto-juvenil brasileira, escrito pela Lygia Bojunga, e que não tem receio de abordar o trágico em meio ao universo da infância.

Neste sentido, o primeiro grande desafio foi o de contar esta história de modo a atrair a atenção das crianças. Não é um filme de ação, não é uma comédia. É um filme que faz as crianças se depararem com a finitude, um filme contemplativo. E fiquei muito realizado ao constatar como o público infantil se deixava levar pelo filme, mergulhava naquelas imagens, como que hipnotizados por um sonho.

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Eduardo com os atores Claudio Mendes, Bia Goldenstein e Augusto Madeira

O segundo desafio foi técnico. Precisávamos construir uma imagem muito difícil e que fosse crível para o público: uma menina de 10 anos equilibrando-se sobre uma corda bamba no alto de um prédio, uma corda que ela lança de sua janela para uma janela escura que ficava de frente para seu quarto. Somente após atravessar esta corda e entrar pela janela escura que essa menina vai conseguir recuperar sua memória (e seus sonhos) e seguir adiante. Esta imagem é o centro do filme, é a partir dela que tudo se desenrola. Construí-la foi uma obra de engenharia cinematográfica, que uniu técnica e poesia. Durante todo o tempo de preparação do filme, eu sonhava com esta imagem. E ela foi para a tela lindamente.

 

Fale dos seus trabalhos para a TV. 

Tive também uma experiência muito rica dirigindo séries educativas para a MultiRio, a empresa de multimeios ligada à Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. São conteúdos de grande valor que ultrapassam o público-alvo (estudantes da rede municipal) para atrair a atenção do grande público, graças às janelas de exibição nos canais a cabo e na TV aberta. Ouvi muitos comentários positivos dos programas que dirigi e de vários outros. As pessoas querem e gostam de conteúdos de bom nível, elas sentem que estão adquirindo conhecimento e informação qualificados.

O trabalho com conteúdo educativo sempre me trouxe um grande prazer, e a certeza de estar contribuindo com algo realmente importante para a formação intelectual dos espectadores.

 

É muito diferente dirigir um programa de TV e um filme?

Certamente.  São mídias diferentes, e devem ser tratadas de acordo com suas especificidades. Dirigir um filme se aproxima mais do processo de se escrever um livro, um romance. Exige tempo, paciência, disponibilidade, dedicação integral. Um filme é como um casamento. A gente precisa escolher bem o tema, a história, afinal, vamos conviver com o filme durante pelo menos cinco anos de nossas vidas, que é o tempo médio do processo de se levar uma história para a tela grande (pode ser muito mais!).

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“Pequenos Notáveis” foi uma das séries educativas que Eduardo dirigiu para a MultiRio.

E claro, depois do filme pronto, depois que o colocamos no mundo, ele nunca deixará de ser “nosso”, como uma sombra que sempre nos acompanha. Por isso é tão importante um cineasta ser honesto consigo próprio, dar o máximo de si para conseguir fazer o filme que ele deseja. Para John Cassavetes, um grande diretor norte-americano que admiro muito, este é o tipo de batalha que vale ser vivida. Que vale uma vida. E eu concordo com ele.

A TV é outro meio, tudo muito rápido, a começar pelo consumo dos programas. O capítulo da novela que vimos ontem já é velho, ninguém quer rever. A TV é um eletrodoméstico no meio da sala de visita, e talvez ainda não tenha se libertado completamente do rádio, no sentido de que boa parte das imagens que nos são oferecidas se resumem a pessoas que falam. É certo que os programas de TV vêm conhecendo um grande avanço em termos de linguagem nos últimos anos, sobretudo as séries de ficção. O cuidado com a imagem e com a dramaturgia vem ganhando espaço e, com isso, os espectadores vêm aumentando seu grau de exigência.

Penso que dirigir para a TV requer uma grande seriedade e responsabilidade. Afinal, estamos levando conteúdo para um grande número de pessoas. Seja no cinema ou na TV, respeitando as especificidades de cada veículo, procuro colocar o coração em tudo que faço. Isto traz um propósito para o produto, e certamente facilita o caminho da verdadeira comunicação.

 

 Do que você mais gosta dessa atividade como cineasta?

Gosto de todo o longo processo envolvido na feitura de um filme. Desde a escolha do tema até a mixagem do som, quando, finalmente, vislumbramos o filme “pronto”, prestes a ser entregue ao público. Ser cineasta é ter amplitude de visão e paixão pelos detalhes, é saber conduzir uma equipe, escutar, observar e escolher bem, para imprimir na tela algo singular, uma obra que possa tocar as pessoas, emocioná-las, convidá-las a conhecer um mundo novo. Quando isso acontece, quando as pessoas nos retornam sensações e impressões que foram produzidas pelo filme que fizemos, nada supera este prazer quase secreto, esta sensação de dever cumprido, de termos conseguido romper a barreira do eu para expandir o que uma vez fora apenas um filme sonhado, e que agora pertence a todos que com ele se encontram. Fazer cinema é como sonhar em público.

 

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Eduardo e seus alunos no NAVE

Você gosta tanto do riscado que se tornou professor de direção cinematográfica. Fale mais sobre isso.

Tenho exercido a atividade docente já há alguns anos, primeiro no NAVE (Núcleo Avançado de Educação), uma parceria entre a Oi Futuro e a Secretaria Estadual de Educação do Rio e, atualmente, na Academia Internacional de Cinema. Transmitir aos alunos a paixão pelo cinema e pelo audiovisual alimenta o espírito e me faz rever conceitos, filmes, autores que admiro. Estou sempre aprendendo. E tento passar este estado de espírito aos alunos.

Cada filme, cada programa de TV, cada projeto com o qual me envolvo, a sensação é de que tudo está começando novamente. Claro que a experiência vai se acumulando, e nos ajuda a buscar as melhores soluções. Mas, este espírito de novidade, de frescor, de desbravar um mundo novo é algo, pelo menos para mim, essencial. Dar aulas me ajuda a manter acesa a chama da curiosidade e da descoberta.

 

Você também é roteirista. Quais são as dores e delícias de escrever para cinema?

Sou roteirista dos filmes que fiz, os curtas e o longa. Considero o roteiro uma parte tão essencial do processo que simplesmente não consigo me ver fazendo uma encomenda para alguém escrever aquilo que estarei filmando. Mas tenho, sim, vontade de convidar roteiristas para compartilhar o trabalho comigo. Acho que isto só pode enriquecer o processo criativo.

No longa “Corda Bamba”, fiz sozinho a adaptação do livro, um trabalho de polimento e, sobretudo, uma busca pelo que eu considerava essencial na história. Nos curtas, trabalhei bastante também com material literário – meus três primeiros filmes são inspirados na obra de Herman Melville. Mas, teve um momento em “Corda Bamba”, lá pelo sexto tratamento, que senti necessidade de compartilhar o roteiro. Então, chamei um amigo, grande roteirista, entreguei a ele o roteiro e combinamos cinco sessões, cinco encontros para passarmos a limpo tudo o que estava no papel. Foi muito importante ter um olhar de alguém “de fora”, alguém que estava entrando em contato naquele momento com um material no qual eu já trabalhava por oito meses. Compartilhar, em cinema, é muito rico. E pretendo fazê-lo sempre mas, repito, não me vejo entregando o trabalho de roteiro para um roteirista e ficar de fora apenas fazendo comentários. Não é meu estilo, não é desta maneira que penso o cinema.

 

Você se sente realizado?

Longe disso. Diria que estou ainda na adolescência cinematográfica. Fiz curtas que circularam bem em Festivais e ganharam prêmios importantes, fiz um longa de ficção que me trouxe grandes alegrias e desafios, e codirigi com mais quatro colegas um longa documentário chamado “5 vezes Chico”, um filme que segue o Rio São Francisco e sua gente, da nascente à foz, um lindo projeto da produtora e roteirista Izabella Faya. (leia a entrevista dela em artecult.com/ac-entrevista/uma-jornada-afetiva-pelo-velho-chico/)

Os projetos de TV também me trazem grande alegria, são fundamentais para que eu possa manter o exercício de estar sempre filmando, já que, naturalmente, o ciclo de um longa-metragem é sempre muito mais demorado. Não posso afirmar que me sinto realizado, e sinceramente não gostaria nunca de dizer isso. Prefiro dizer que estou em realização.

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A equipe do filme “Corda Bamba”

E o que vem por aí? Quais são seus novos projetos?

Atualmente, estou dirigindo uma série muito instigante. Chama-se “Estados da Arte”, e será exibida no Canal Curta!, um canal que traz uma proposta inovadora, que eu vejo como uma espécie de oásis em meio à aridez da programação que a TV (fechada ou aberta) oferece nos dias de hoje. Esta série, composta de 12 episódios de 26 minutos, traz para o público a produção atual da arte contemporânea que se faz no Brasil, a partir de 12 questões.

Cada episódio trata de uma questão e, para isso, privilegiamos a voz dos artistas, revelando as diferenças e ressonâncias que uma questão pode provocar entre eles. São quatro ou cinco artistas por episódio, cujas obras são, de algum modo, atravessadas pela questão apresentada. O que apresentamos é uma articulação entre pensamento e produção artística. O universo da arte contemporânea brasileira é riquíssimo e, durante a produção desta série, pude constatar que este universo ainda é um dos últimos redutos onde o pensamento ainda consegue se expressar. A série está em fase de finalização. Estamos terminando a captação de imagens, mas já posso afirmar que este foi um ano de grandes descobertas para mim no mundo da arte contemporânea brasileira. Uma verdadeira saga.

Espero que o público possa ter tanto prazer em assistir à série quanto eu e toda a equipe envolvida tivemos ao realizá-la. Tenho outros projetos de TV em desenvolvimento, e pelo menos dois temas para longa-metragem que vêm me acompanhando há algum tempo, totalmente distintos. Um que aborda a questão do negro do Brasil, a importância da presença negra na formação deste país que hoje conhecemos, e a falta de informação sobre todo o sofrimento imposto aos negros vindos da África.

O outro tema diz respeito às novas formas de sexualidade presentes na sociedade atual, já amplamente experimentadas pelos mais jovens, ao passo que as gerações mais “maduras” ainda receiam aceitar estas novas formas de afeto. Um filme que aborde o conflito de gerações, e que possa, sobretudo, trazer esclarecimento para as pessoas. Ainda não são projetos, são ideias. É chegada a hora de sentar para pesquisar e escrever.

 

Contato:

eduardo.goldenstein@gmail.com

Vimeo:

https://vimeo.com/search?q=eduardo+goldenstein

Corda Bamba no facebook:

https://www.facebook.com/cordabambaofilme/?fref=ts

 

Author

Jornalista, roteirista, mãe, poeta, editora, escrivinhadora, atriz. Mulher. Sou filha da PUC-Rio, formada em Comunicação Social com habilitação em jornalismo. Trabalhei em revistas sobre meio ambiente e educação. Fui parar na TV na produção do Globo Ecologia e logo estava participando da criação do Canal Futura, onde fiquei por mais de 7 anos. Trabalho na MultiRio, uma produtora de multimeios educativos da prefeitura do Rio de Janeiro, há 10 anos, atuando como roteirista e editora. Colaborei para os sites Opinião e Notícia e para o ArteCult escrevendo sobre Educação, Cultura, Cidadania, Meio Ambiente e fazendo várias entrevistas. Escrevi também para a Revista do Senac Educação Ambiental por cinco anos. Me formei em teatro pelas mãos de Bia Lessa. Fui dirigida por Alberto Renault e Roberto Bontempo. Conheci muita gente talentosa. Aprendi com muita gente boa. Fiz cursos livres de canto, de dança flamenca, de locução de rádio e de roteiro para TV e cinema. Sou uma leitora contumaz. E ótima ouvinte. Gosto de observar a vida e de dar pitaco em alguns assuntos os mais variados. Mãe de dois adolescentes, continuo aprendendo sobre a vida todos os dias. O humano me encanta. E me aterroriza também!