Coluna vazia, coração farto

 

Esta minha coluna no Canal Literatura, negligenciada entre as várias coisas que precisei calar no ano que congelou minha vida.

Tento voltar, tenho ideias, anoto-as, estão lá no gravador de voz do celular. Já estiveram em pedaços de papéis, que perdi entre uma e outra bolsa. Perco o timing, acumulo dívidas de gratidão com o editor, adio a chance de diálogo com possíveis leitores.

Foi acontecendo devagar mas, de repente, tudo aconteceu. A vida mudou. Foi de súbito que os pais ficaram velhos aos meus olhos, após adiarem, com a rotina ativa dos dias, o momento de caminharem com passos mais miúdos ou de deitarem-se sem poderem levantar-se.

Hoje sei que em muitas casas há histórias assim. A mãe não consegue gerir o dinheiro. Alguém precisa cuidar disso.  O pai fica repetitivo. É preciso paciência, mesmo quando a paciência é pouca. O idoso quer sair de casa e intui-se o risco nas ruas irregulares ou tem-se medo de que não saibam voltar. “Alguém vai junto, por favor?” Já não se ri mais das confusões da mente, que eram engraçadas, nos almoços em família. Rir fazia parecer que estávamos lidando positivamente com as pequenas tragédias que a vida anunciava. Rir agora traz culpa, parece desrespeito diante da gravidade do momento, quando se delimita o que pode ser sublimado e o que urge cuidar.

O quadro se agrava. Por maior que seja nossa assistência, numa hora, eles não conseguem segurar os talheres. Num momento seguinte, talvez não consigam deglutir. São tantas pequenas perdas, contra as quais se luta ferozmente, armados de fonoaudiólogos, fisioterapeutas, cuidadores, médicos etc. Ilusão achar que teríamos tempo para uma preparação. O destino vira as páginas enquanto estamos distraídos com os compromissos diários. O livro da vida pula da página 20 para a 109 numa madrugada.

Quando se vê, a pessoa está no centro da sua vida. Paulatinamente, você passa a tomar decisões, a cuidar da rotina dela, da casa, dos compromissos, da tabela de remédios, das visitas médicas. Ela não lhe entrega as rédeas da própria vida. Resiste a abrir mão de pequenas coisas porque pensa que ainda consegue pôr a vida em ordem, sem ser capaz, entretanto, de perceber que a vida já se desmontou. Você vê claramente o que os olhos que o guiaram no passado não conseguem enxergar. Você vê além, como se tivesse superpoderes diante de quem foi, um dia, seu super herói. Mas sabe que, apesar disso, não é super e nem herói. Está vulnerável, emocionado, estagnado, sem tempo de processar as coisas que o surpreendem porque mais urgente é resolvê-las.

Você está mergulhado numa consciência absoluta sobre o outro que o outro não tem sobre si próprio. Mas a sensação não é de empoderamento e sim de humildade.

Longe de ser super herói, tudo em você é fragilidade. Uma mistura de ternura, compaixão, empatia, medo, claustrofobia, zonzeira. E o obrigatório conflito com as paranóias em relação ao seu próprio envelhecimento futuro. Você mal dorme, mal consegue contratar os serviços que são necessários, dar os remédios, respeitar os horários, cumprir as obrigações da vida deles que atropelam os compromissos da sua, que são muitos, antes ocupavam seus dias inteiros. Vira do avesso. Dói, não dá tempo de chorar. Perde o ar, ajoelha na capela do hospital. Sente-se só. As referências mais fortes da sua vida estão ali adormecidas no corpo daquela pessoa que você ama. “O que meu pai/minha mãe diria?”. Você não pode aconselhar-se.

Não digo isso para que você se entristeça mas, pelo contrário, para que se sinta abraçado. Porque pode parecer que aconteceu só com você ou que foi falta de sorte. Não. Esquece. Era inevitável. A vida segue, os anos passam, os problemas chegam. A vida é trágica nos amores desfeitos, nos desencontros, nas escolhas erradas, nas perdas, na proximidade do fim – seja ele repentino ou não. A vida de todo mundo é assim.

Viver é superar esses momentos. Por necessidade. Por amor. Sabe-se lá por quê. Viver é superar e criar ambientes para melhor viver. Abrir sorrisos para adiar o desespero. Dar passagem para a alegria e para o carinho.

Bem, ao menos assim, penso ter achado um caminho. Carrego sempre uma dose de gratidão por cada dia vivido e uma dose de alegria para atravessá-lo. Entendi que sorrir para o outro afasta a obscuridade dos pensamentos. Ler poesia ajuda a cavar uma memória doce muito antiga. Música traz calma para o ambiente e bem-estar para o coração. O amor presente nos pequenos gestos faz o mundo paralisar. Parar de pensar na tragédia é indispensável num certo momento.

Não é alienação; é ter noção do limite. Do que é possível viver. Do quanto é possível amar. Do que se pode fazer.  Câncer, Alzheimer, AVC, Infecção pulmonar?  Só dá para estar ali e trazer um carinho. Ler, cantar, resgatar uma lembrança, inventar uma história bacana. Dar as mãos à beira da cama, afagando a cabeça, beijando a bochecha, cheirando os cabelos. Só dá para ser presença, toque, coração colado ao outro, olhos marejados com sorriso nos lábios. Seu peito abriga paradoxos: você está feliz por estar ali e está triste porque tem consciência; sofre porque sua vida ocupa um espaço de tempo mínimo e revigora-se por poder dedicar-se a quem ama.  Amar é comovente, como talvez nunca tenha sido. Amar é intenso. Quase pode-se apalpar o sentimento. Ama-se através do olhar ou no tom da voz. Ama-se a respiração do outro ou uma levantada de sobrancelha porque, sabemos, cada instante é milagre.

Esse amor conspira sorrateiramente contra você. Tece um fio de ligação profunda com o objeto da sua afeição. E, naturalmente, tudo que era angustiante e estranho, soa familiar. Tudo se arruma em prateleiras na sua mente.

Quando cai a noite, você ainda está assustado. Quando o dia termina, não deu tempo. A saudade de poder estar um pouco mais com as pessoas ou de a vida poder ser como sempre tinha sido permanece. Mas, em seu peito, dilatado por ternura e por gratidão, cabe a certeza de que não há o que não possa ser superado. Nasce um sentimento de potência. Pelas janelas do claustro, passa luz. A fragilidade se torna força. Cuidar é um gesto espontâneo. E o amor tudo (re)compensa.

Eu volto.

Meu coração está cheio de histórias.

 

ANA GOSLING

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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