Carta ao meu anjo

Foto da autora.

 

Mãe, desde que você partiu, existe uma longa sensação de luto. Começou ali mas se manteve quando tantos outros se despediram. Pais e mães. Filhos. Muita gente, mãe, porque a pandemia chegou.

Houve um momento de muita esperança. Uma conexão mundial. Descobriram vacinas! Íamos ficar bem. A era do medo daria passagem à do renascimento. O Homem vencendo o Fado. O homem esmagando a adversidade com sua razão e sua persistência. Inspirado por Deus, mais aberto à espiritualidade, depois de ter entendido que a tragédia nos iguala.

Mas hoje, mãe, a esperança de muitos está fragilizada. Há quem não tenha entendido, ainda, a necessidade de cuidar de si para cuidar de todos. A interdependência esfregada na cara da gente. A descoberta da lição de fraternidade, ensinada antes da nossa existência. Parece simples. Não é. A esperança tem que ser alimentada.

Penso em você, em como me faltam os diálogos à mesa do almoço de sábado. Juntas e perplexas, falaríamos dos negacionistas, dos corruptos agindo em plena crise sanitária, da falta de empatia. Lembraríamos, emocionadas, os amigos que partiram. Alguns, você recebeu em casa, ainda jovens. Estaríamos de mãos dadas sobre a mesa da copa, na casa hoje vazia. E seríamos gratas por estarmos bem.

Adivinho seus conselhos, os comentários sobre as fotos recentes,  as críticas sobre as brigas travadas. Imagino seu olhar amoroso e triste ao testemunhar as histórias de hoje. O desamparo é real quando se está num mundo que não se compreende mais. Mesmo madura, estou debruçada sobre os dias como se fosse criança perdida, tentando entender o fluxo. Perdeu-se muito da vida que conhecíamos de cor.

Frente à violência do mundo atual, penso aqui: talvez precisemos de amor de mãe.

Foto da autora.

Urge esse amor que só mãe ensina a praticar. Acolhimento na volta para casa, mesmo sendo nós os culpados pela sua madrugada insone. Indignação com a injustiça praticada contra seus filhos. Paciência ao ensinar-nos a caminhar e a rir dos próprios tombos. Colo, em silêncio, quando precisamos. Crítica através do olhar quando perdemos a razão, guiando-nos de volta ao tom certo, ao argumento justo. Que nos senta juntos para fazermos as pazes e para o lar (o mundo) se tornar um lugar de harmonia. Torcida e aplauso ao nosso esforço, por ver nossa luta diária pelo equilíbrio. Ninguém sabe, ninguém vê, muitos julgam. Essa acolhida é imprescindível. E a crença de que “tudo vai ficar bem”, só porque o coração acredita, também. Mãe sempre ensina que acreditar é tornar real.

Precisamos dar colo aos filhos órfãos de suas mães. Quando uma mãe parte, todos ficamos um pouco desprotegidos também. Mãe é referência forte. Para amigo do filho, namorada, para os sobrinhos que enxergam naquele bloco familiar de avô-avó-pai-mãe-tio-tia uma bússola.

Precisamos abraçar amorosamente as mães órfãs de seus filhos. A imagem mais dilacerante. Nenhuma palavra encaixa, nenhuma lógica explica. Devemos cercá-las de carinho.

Acolher é necessário e urgente. Receber e ofertar. Ligar no domingo. Hoje. Mandar mensagem, emoticon. Comprar uma flor. Fazer um mingau. Sentar-se ao lado em silêncio. Deitar a cabeça no ombro. Colocar uma música. Cuidar um do outro.

Não está fácil. Mas, de mãos dadas, sempre fica melhor.

Que saudade, mãe! Você continua em mim. O amor semeado por você ainda mora aqui, neste plano, junto ao legado de amor deixado por outras mães. Que bom! Mesmo de longe, vocês ainda fazem desse mundo um lugar melhor.

 

ANA LÚCIA GOSLING

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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