Às quartas – Sob ruínas

 

Passageiro

O mundo ficará

quando eu partir.

Para onde vou

não sei se me lembrarei

do que vivi,

naquele parque,

aqui.

Para onde vou

talvez nem leve registros –

se tudo acaba,

se vai o que sinto,

não sei.

Sobra apenas

incontestável verdade:

o mundo permanecerá.

Mudança após mudança,

se reinventará.

Como aceitar que somos

– nós, não as coisas –

transitórios?

Que passamos,

sumimos,

acabamos?

(Blog da Ana, 18.12.2011)

Ilha de Delos – Foto da Autora

A ideia me voltou quando estava em Delos, a sagrada ilha grega, dedicada, no passado, ao deus Apolo e, também, a Artemis.

A ilha inteira é ruína histórica, tanto grega quanto romana, já que guarda alguns rastros do período em que foi ocupada por romanos. Há espaços ainda inexplorados. O que poderão revelar mais sobre a cidade abandonada no meio do Mar Egeu?

Caminhava por ali, reconstruindo, mentalmente, o passado daquele povoado. Sobre os altares, imaginando as estátuas. Expandindo e cobrindo os esqueletos de paredes com o revestimento encontrado aqui e ali, em outros cômodos. Pelos rastros deixados, pode-ser saber como viviam, como era sua devoção, como se organizavam politicamente. Sobre o mercado de peixe, nos conta a mesa de mármore debruçada sobre a vista do porto. Sobre a apropriação romana dos ritos religiosos, nos fala o altar romano em louvor a Apolo, situado entre dois altares gregos em homenagem ao mesmo deus. Sobre a preocupação de protegerem-se de invasões nos diz os labirintos de sua arquitetura urbana, para serem percorridos com a ciência que apenas os moradores teriam, com tempo de esconderem-se, fugirem-se, armarem-se contra um inimigo.

Ocorreu-me: não é interessante que sejam os objetos, a concretude terrena, a arquitetura a contar nossa história? Nós, humanos, eternos perseguidores do efêmero, do espiritual, em constante exercício do desapego (incentivado pelas religiões mas também pela filosofia, bom conselho a crentes ou ateus) deixamos nossas marcas, nossa cultura e nosso pensamento inscritos nos objetos deixados para trás.

Claro que estou minimizando uma questão que seria bem mais ampla. Mas eu andava entre as casas do passado e pensava ser incrível saber dizer se aquele que a habitou era mais ou menos rico do que a maioria da população. Um pensamento inocente de que nos objetos escolhidos reside um pouco nosso espírito me pareceu intrigante.

Ilha de Delos – Foto da Autora

O acesso às ruínas traz uma alegria: ter acesso a histórias que explicam e ensinam por que somos, hoje, o que somos. A riqueza arqueológica é para vistas treinadas, amorosas em relação à ancestralidade humana. Ser capaz de enxergar através dela provoca encantamento.

Com esse sentimento, pisei o chão sobre o qual se ergueu tanta história. É solo sagrado, como enunciam, mas é ostensivamente humano. Reflete paixões, crenças, estruturas sociais, o sistema hidráulico e o de saneamento, como se relacionavam com o clima e com a passagem do tempo. Em silêncio, nos diz sobre a crença daqueles homens, o que os motivava a viver, amanhecer o dia e esperar pela noite.

Ruínas não deviam ter conotação pejorativa, como a que lhes damos, habitualmente, no uso da língua, em especial para definir estados de espírito. Ruínas são silenciosamente potentes. Se sobre o chão se espalham fragmentos e restos do que se foi e se perdeu, são eles que contam a história vivida e de onde parte a força para a reconstrução.

Vale para os sítios arqueológicos. Vale para nós.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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