Às Quartas – O que é do homem, a tecnologia não come

Foto: GR Stocks, em Unsplash

Não faz muito tempo, a novidade era o chatGPT, da OpenAir. Nos grupos de literatura, os testes comprovaram: autoescrevem-se textos em segundos, mas todos com débil valor literário. Uma cópia mal feita de estilos, se pedirmos o tom consagrado de um Machado de Assis ou uma Clarice Lispector.

Respiramos, os escritores. Ainda não seríamos obsoletos. É preciso muito para a máquina escrever como um Guimarães Rosa. Talvez seja inalcançável ao cérebro eletrônico o entendimento de sua profundidade psicológica ou do seu conhecimento linguístico.

Mas se há uma coisa que voa no tempo é o avanço tecnológico e, em específico, o da inteligência artificial.

Logo depois, testei o aplicativo para montar um programa de aula. Ele o fez, em segundos, maravilhosamente bem. Com uma ou outra adaptação minha, a missão durou segundos à máquina e uns dez minutos à humana, para os ajustes necessários.

O uso foi absorvido pelas mídias e, até, cursos e faculdades. Notícia velha. Textos e imagens criadas a partir da inteligência artificial fazem parte da rotina de normalidade.

É inevitável, admirável, assustador e… normal.

Um amigo me mostra o diálogo travado, pedindo a sugestão de uma música para associá-la a uma matéria. A resposta da IA: o nome da música, o do artista e uma breve análise das razões que justificariam a associação. A inteligência artificial defendendo a sua escolha!

O mundo parece poupar ao humano o trabalho “braçal” e ceder-lhe tempo para o espaço criativo. Será?

Em agências de publicidade, revistas e jornais já se substituem profissionais por máquina. Perdem-se empregos e, em muitos casos, a qualidade do material produzido. Os entusiastas da tecnologia dizem: o mundo gira, novos trabalhos surgem e antigas funções se aposentam. Se não existem mais, hoje, as telefonistas das companhias telefônicas, também não existiam, no passado, os pilotos de drones.

Parece lógico. Mas, na semana passada, duas histórias me intrigaram.

Kelly Sikkema, em Unsplash

Uma entrevista do linguista Caleb Everett à BBC Brasil me fez pensar sobre como a tecnologia se tornou importante para acelerar o processo de estudo das línguas. Por outro lado, os “large language models”, base de aplicativos, como o GPT, são abastecidos com muitos dados e, embora o mundo tenha mais de 7 mil línguas, somente algumas dezenas possuem dados suficientes para alimentar esses modelos. Assim, de um lado, acelera-se o estudo e, de outro, a morte de algumas línguas. Preocupa por sabermos a língua não ser só uma nomenclatura para coisas existentes mas a responsável por moldar o raciocínio e a visão de mundo do indivíduo.

Outra: o aplicativo “Magibook”, anunciado como “… desenvolvido para democratizar os livros e suas ideias, tornando-os acessíveis a todos, (..) quebrar barreiras à alfabetização e capacitar os usuários a explorar e desfrutar da literatura sem esforço” (grifos meus). Destina-se a pessoas com dificuldade de aprendizado, dislexia e déficit de atenção. Também mira o seguinte público: pais, professores, estudantes da língua. Pergunto-me: uma literatura menor (considerando-se que há simplificação do texto artístico) resolve o problema de desenvolvimento do indivíduo a que tal limitação se oferece no processo de aprendizado? 

Podem chamar-me de ultrapassada. Para mim, língua é desafio a ser vencido. Transpô-lo traz aprendizado e prazer. Atravessar uma leitura, sem deter o significado de todas as palavras, atento às artimanhas manipulativas do autor, dá encanto ao mergulho e maturidade ao leitor.

Essas questões me soaram mais desafiadoras do que a inteligência artificial escrever textos ou forjar imagens. Não é como a calculadora fazendo somas nem como o computador processando informações para o humano. É a máquina nos dizendo como pensar. Substituindo ou moldando o pensamento.

Inevitável? Assustador, mesmo admirável. E será normal.

ANA LÚCIA GOSLING

@analugosling

 

 

 

 

DICA DA SEMANA:

Foto: Convite Editora 7 Letras

No dia 2 de julho, foi lançado o livro “O inferno das frases de efeito”, do escritor Jair Ferreira dos Santos, pela Editora 7 Letras.

O autor é poeta, cronista, contista e aventura-se em seu primeiro romance. Fui aluna de Jair numa Oficina de Contos Avançada, no Instituto Estação das Letras. Excelente professor, garimpador de todos os vícios e orientador, moldou para melhor a escrita de vários alunos. Um escritor admirável, que domina e usa magistralmente a língua que amamos.

Disse Alexandre Brandão sobre a leitura do livro, num post informal em sua página nas redes sociais: “esse romance do Jair é das melhores coisas que tenho lido. Tem um frescor que falta a muito escritor jovem. Jair não só nos conta uma história – e uma boa história, que é também uma crônica de uma cidade média do Paraná – como dá um banho de boa linguagem, de texto fluido e inteligente…”

João Paulo Vaz, colega de Jair no IEL, declarou publicamente sobre o livro: ” ‘A vida pode não ter sentido mas certamente tem prêmios’. Assim o ex-poeta Max Strasser, protagonista desse romance, inicia sua narrativa. Através dele, Jair Ferreira dos Santos exercita, em sua estreia como romancista, o poder de síntese (a faca serena), o humor cáustico, as imagens surpreendentes e o rigor intelectual que o consagraram como poeta, contista e ensaísta. O resultado é uma linguagem singular na ficção longa que deixa o leitor primeiro atordoado, depois maravilhado…”

O convite desta coluna para a noite de autógrafos chegou tarde. Mas em tempo para a divulgação e o incentivo para a compra e leitura desse romance, indicado pelos melhores e escrito por um Mestre.

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Foto: Divulgação

E, por falar em Instituto Estação das Letras, hoje, quarta-feira, dia 03/7, o instituto promove o “Sarau Cênico- literário Ferreira Gullar – Traduzir-se”, às 18 horas. Trata-se de uma apresentação de 50 minutos com 10 participantes interpretando textos poéticos do poeta.  O Sarau é o resultado de uma pesquisa realizada com pessoas de diferentes idades e profissões sobre A Palavra como Ação, em uma vivência onde se exercitam as técnicas de comunicação desenvolvidas por Delson Antunes. O objetivo é propiciar um  melhor aproveitamento da palavra, explorando as suas possibilidades expressivas. As palavras ganham vida, ganham imagens, provocam sensações.

O evento é gratuito e on line mas é preciso reservar seu ingresso e garantir acesso à sala virtual, através do SYMPLA.

Informações:

Tel/Whatsapp: (21) 99127-4088

E-mail: iel@estacaodasletras.com.br

 

Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:


com Ana Lúcia Gosling

com César Manzolillo


com Tanussi Cardoso

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

3 comments

  • Quantas reflexões podemos fazer a partir da leitura da crônica. O mundo de hoje, para o bem e para o mal, não cansa de nos surpreender.

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  • Ana Lúcia Gosling, parabéns pela crônica que nos traz uma reflexão contemporânea importantíssima de uma tecnologia que está impactando todos os segmentos da Humanidade. Obrigado ❤️

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  • Obrigada, Raphael e Cesar, pelo retorno reflexivo. Não paramos de nos sentir provocados a pensar por esse “novo mundo” que nos cerca, não?

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