Às quartas – Negócio fechado

Não é fácil desfazer-se de um imóvel de família. Para a corretora, o imóvel é uma mercadoria; para o comprador, uma peça sob análise de custo e benefício. Mas, para o vendedor que foi feliz ali, a referência é afetiva. Conquistas, vidas amadurecidas, segredos guardados entre as paredes. A maior parte das histórias relevantes da sua vida aconteceram ali.

Foto da Autora

Negócio fechado. Alívio. Chega de despesas com o imóvel desocupado. Fim da preocupação com o abandono e com a deterioração. Dinheirinho na conta. Possibilidade de novos sonhos.

Vendido. Um traço de tristeza. O último vínculo físico com um passado em que se foi mais jovem, mais idealista, mais amado. Talvez a casa fosse mais cheia, a saúde estivesse melhor, a necessidade financeira mais atendida e não se precisasse vender parte da própria história para seguir-se a vida. O chão da ancestralidade será pisado por estranhos, as portas blindarão a passagem para o que costumava ser refúgio.

Sento à varanda da casa dos meus pais, onde, antes, eles liam o jornal pela manhã. Observo o movimento da rua lembrando como lhe distraíam as crianças, os gari, as freadas na esquina, os cães farejando os canteiros em frente ao portão. Tudo em volta permanece. São poucas as mudanças na rotina da rua. Apenas o orelhão da esquina, obsoleto há tempos, foi retirado, abrindo mais uma vaga para o prédio antigo, sem garagem, do outro lado.

Foto da Autora

Dentro, a casa está vazia. Os móveis retirados revelaram maiores os espaços antes ocupados. No piso de madeira, cada passo ecoa, em destaque. O silêncio a abraça. Falta o movimento da cozinha, o volume alto da tevê, o som da bomba armada para aumentar a pressão da água enquanto alguém tomava banho. Falta o latido da cadela no fundo do quintal e a alegria com que recebia os visitantes rotineiros. As vozes misturadas na copa, na hora do jantar. Os risos das crianças evaporando no quintal.

Abro a porta ao comprador. Chega com o pedreiro e põe-se a sonhar. Inverte os papéis dos cômodos, caminha sobre tábuas imaginárias, ergue uma parede com o movimento dos braços. Enxerga outro mundo. Mas, como a moradora antiga, ama as árvores. E, embora a raiz de uma delas tenha arrebentado a cerâmica do quintal, quer preservá-la, redirecionar seu caminho e mantê-la viva e frondosa na frente da janela onde cresceu nas últimas décadas, sob nossa admiração; de broto-criança à árvore-adulta.

Sorrio, pensando a casa ter encontrado o amor que merece. Aquele que a protegerá e poderá, depois do longo período de recato, cobrir-lhe de vida, planos e sonhos.

Tudo permanece. Nada é como antes. Está bem… Entrego as chaves.

 

ANA LÚCIA GOSLING

@analugosling

DICA DA SEMANA:

Muitos eventos artísticos estão acontecendo nesta e na próxima semana com renda revertida para as vítimas das enchentes do Rio Grande do Sul. Hoje mesmo, ocorrerá o show “Somos Todos Rio Grande do Sul”, no Vivo Rio, com apresentação de Pedro Bial, presença de Ney Matogrosso e vários artistas do pop rock nacional.

Mas, como esta é uma coluna literária, o show mais lírico ocorre na quarta-feira próxima, dia 29, no  Qualistage, no Rio de Janeiro. Artistas como Alceu Valença, Lenine e Geraldo Azevedo, entre outros, hão de garantir o tom poético das canções.  É uma oportunidade de ajudar aos irmãos gaúchos e, em devolução, receber o melhor da nossa música.

Foto: divulgação

 

SERVIÇO 

NAÇÃO SOLIDÁRIA

 

Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:


com Ana Lúcia Gosling

com César Manzolillo


com Tanussi Cardoso

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

2 comments

  • Chorei lendo sua crônica! Minha casa de Teresópolis também já teve mais vida com a presença de meu lindo marido. Hoje tento seguir com seu legado e bom gosto na escolha dos itens que reformamos. A presença dele está em todos os cantos da casa. Deve ter sido muito difícil mesmo o desfazimento da casa de sua infância. Eu mesmo tenho muitas lembranças de sua casa.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *