ÀS QUARTAS – Eu me imagino flor

Foto: Aziz Acharki, em Unsplash

 

No Marrocos, as cidades à beira do Saara são parecidas, se avistadas da estrada. As construções em cor de barro sugerem aridez. Mas nos enganam: há estúdio de cinema, com estátuas grandes, no estilo hollywoodiano, locações de filmes famosos e, também, um vale de rosas. 

Voltava a Marraqueche, depois de dois dias no deserto. O primeiro, pernoitado num hotel tradicional, com tapetes coloridos sobre o chão de terra. O segundo, abrigada numa tenda, após uma noite em que o frio e o céu, furado de estrelas, me lembraram da minha saudade.

Eu tentava ignorá-la. Olhava, pela janela do carro, as pessoas caminhando pela via. Mulheres  cobertas, apenas com os olhos de fora. Homens também. “Eles se cobrem mais pelo sol e pela poeira do que pela religião”, me disse o guia. Vestes coloridas contrastavam com o fundo marrom. Emocionada pela noite no deserto, eu os emprestava minha melancolia. 

Pausamos a viagem para água e banheiro, às portas do Vale das Rosas. “Rosas?”, estranhei. “Sim, rosas”. O encantamento se descortinou no meio do dia: há, no deserto marroquino, um vale em que se cultivam rosas. Brotam na areia e são colhidas por mulheres e vendidas às cidades vizinhas. Transformam-se em todos os produtos de beleza que se possa imaginar.

A entrada da loja simples, à beira da estrada, não revelava muito. Do chão ao teto, distribuídos em prateleiras, variados artigos de beleza, higiene, perfumaria, óleos. Uma Granado inteira de produtos à base das rosas cultivadas no vale. 

Foto: Fadel Senna/AFP, Câmara de Comércio Árabe Brasileira

Um atendente me contou curiosidades. Cinco toneladas de rosa produzem um litro de óleo. Num ano, colhem-se três ou quatro mil toneladas delas. Não se sabe quem trouxe roseiras para a beira do Saara. Diz-se, sem certeza, que teria sido um peregrino, vindo de Meca, há séculos atrás. Eram plantadas em torno das frutas e dos legumes, impedindo os animais de devorarem a horta, até virarem, elas próprias, o plantio que sustenta uma cidade.

Queria tê-las visto espalhadas pelo vale. Quando estive lá, não haviam brotado. Florescem, somente, entre abril e maio. Há uma festa para recebê-las, com a coração de uma Rainha das Rosas. Vi fotos penduradas das moças escolhidas nos anos anteriores. 

Tudo nessa história alimentava meu coração. Na véspera, eu pisara a areia do Saara, talvez o desenho da última página de “O Pequeno Príncipe” ou o chão de Bark, o escravo liberto de “Terra dos Homens”. Deitara sob as estrelas do deserto ao lado do meu filho. Agora, tomava conta da minha imaginação um campo de rosas com festa e rainha, colorindo o barro da paisagem.

Meus olhos cobririam o resto do caminho com otimismo. Rosas brotarem no deserto é uma espécie de milagre. Quem sabe nos seja, também, possível florescer sobre nossos desertos? Saí dali torcendo por isso. 

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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