ÀS QUARTAS – Ah, os passarinhos!

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Uma das grandes alegrias da vida é minha varanda ser frequentada por passarinhos.

Nossa aproximação começou na pandemia quando, em isolamento, resolvi interagir com os visitantes arredios. Quis agradá-los com frutas e, se no início só um se aproximava, desconfiado, alternando-se com outro, logo a novidade se espalhou e mais vieram e começaram a comer aos pares e aos trios.

Não que sejamos íntimos. Se me vêem, voam. Mas se sentem à vontade para cobrarem, pela manhã, o atraso no fornecimento da frutinha gelada. Piam, em protesto, à beira da janela. Sabe como é: dá-se a mão, já se espera o braço.

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Observo que a sociedade da varanda possui uma hierarquia. Em baixo patamar, estão os sabiás-laranjeiras, abrindo espaço para os sabiás-pocás e para os bem-te-vis. Estes, quando pousam ao lado do prato de mamão, dominam a cena. Ninguém ousa aproximar-se. Ficam lá pipilando, olhando para os lados, enquanto os sabiás se enfileiram na grade esperando a hora de, também, deleitarem-se. Impõem sua autoridade sobre os demais.

É preciso dizer: lindos! Fofoqueiros, alegrinhos, agitados, passam rapidamente, voam, voltam, cantam, pousam na planta, lançam-se no ar deixando sua presença no balanço das folhas. Ninguém os nota, além de mim. Enriquecem minha vida com essa movimentação.

A parte complicada da relação é a sem-cerimônia com que se servem dos frutos da jabuticabeira. Não sobra nem um pra contar a história. Se me perguntam se as jabuticabas são doces, não posso dar testemunho. Os passarinhos comem, sempre, todas. Conhecedores profundos, enquanto vigio os frutos, esperando o amadurecimento, eles identificam o dia, a hora, o momento. Encontro-os bicados, para minha frustração.

Até agora, provei um. Nascido na parte mais baixa do tronco, dentro do vaso, protegido do assanhamento do passaredo. Os outros foram parar em bico de ave. Mas não fico triste; alegra-me saber que nova expectativa os trará de volta, tornando habitual a visita.

Efeito colateral inesperado: na cola, os morcegos vêm, atrás de frutas, no fim do dia. É preciso lembrar de recolher os restos para evitar os vôos rasantes das criaturas da noite. Sob protestos do irmão que, de sua casa, me diz que morcegos também têm lá sua dignidade, sonhando convencer-me a alimentá-los à distância. Sem chance.

Moro num apartamento pequeno e aconchegante. Tenho uma varandinha que me traz horizontes. O verde da mata, as rochas da reserva florestal, um pico em destaque. Abre espaço às plantas e flores. Vira maternidade de lagarta e de percevejos de mato. Lá, alimentam-se passarinhos. Caminham, juntos, jabutis. Nessa rotina “besta”, meu coração se dilata e a vida desacelera. Construo momentos de ser feliz.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

3 comments

  • Que leitura gostosa, a da crônica “Ah, os passarinhos!”!
    Ninguém precisa ser um birdwatcher, nem, muito menos, um ornitólogo, para apreciar essas pequenas joias vivas que vivem ao nosso redor. Basta acompanhar o olhar amoroso como o de Ana Gosling, que nos descreve cenas com uma linguagem leve e delicada e ainda nos brinda com lindas fotos. Que prazer!

  • Mais um momento mágico e poético do ÀS QUARTAS. Parabéns a Ana. Que continue nos brindando com essas lições de vida e delicadeza. Precisamos todos.

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