Retrópica: Cores, brilhos, músicas, uma bomba de informação. Enfim, nosso país.

Nós amamos o algoz. Nosso gozo vem com surra. O imigrante é o sonho canibal.

Começo assim essa coluna, com um trecho do Manifesto Cu-Brasil de Leonarda Glück, sonorizado no espetáculo de Mari Paula, em que uma figura feminina abre a cena tal qual uma santa no altar e logo se desmancha em sensualidade desnuda dos códigos da santidade. Retrópica é um espetáculo solo que denuncia as dominações dos sentidos pelo neocolonialismo, também aborda sobre o fanatismo e intolerância, além das interlocuções culturais entre o Brasil e a Espanha. Destas reverberam os atravessamentos gestuais que vão do samba ao flamenco, rasgando a espacialidade com um corpo que traz a cena o informe de ser mulher – um campo alvo do estupro do colonizador na terra sul-americana.

Retrópica foi escrito em 2015 quando recebeu o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, que por questões políticas ligadas ao desmanche do ministério da cultura só começa a ser executado em 2017.

A investigação do espetáculo começa juntamente com o mestrado que a bailarina realizou na Espanha, em que questões sobre decolonialidade emergiam na pesquisa. O fato de estar na Europa ouvindo sobre a violência de seu continente a fez investigar antropofagia para poder ressignificar esses trânsitos entre os espaços culturais e temporais. Mari Paula diz que o trabalho ativa a sensorialidade quando traz a cena o odor do preparo de sua tortilha, que é feita e devorada pela mesma na ação cênica, em seguida ainda sentada a mesa dispara um texto dito em espanhol sobre o canibalismo dos narcotraficantes da América do Sul.

Além da estética cheia de cores, brilhos, músicas, uma bomba de informação segundo a própria autora. Para a artista tudo isso junto é o que representa o país, tão cheio de informação, ritmos, cheiros, gostos, cores, gente caindo e levantando, cheios de derrotas e vitórias.

O texto que abre o espetáculo é o Manifesto Cu-Brasil, uma provocação ao manifesto Pau-Brasil de Owald de Andrade, já que este representa uma voz branca, masculina, burguesa. Por isso a artista convida uma dramaturga trans para escriturar esse manifesto, além disso, Mari Paula conta que essa escolha foi feita porque a Leonarda consegue informar as ocorrências mundiais em uma única frase, o que faz com que o texto vá se atualizando, e por meio desta operação se torna cada dia mais profético. O nome do projeto foi escolhido em 2015, exatamente porque o país estava em crise política e social, momento em que viu uma necessidade de retropicalizar evocando o potente e criativo movimento da tropicália, nascido em plena ditadura. Não para copiar a tropicália que existiu em um recorte no espaço-tempo, e sim antropofagizando essa urgência toda em uma direção mais irônica tal qual os modernistas dos anos 20.

Mari Paula diz que a primeira memória que acessa em ter desejo por algo na vida foi por dançar, lembra-se de pedir para completar logo 7 anos. Idade em que entraria no conservatório de dança. , por isso fez parte de diversas companhias de dança, entre elas: Balé Teatro Guaíra PR. Apesar disso fez graduação em Artes Cênicas, pois já pensava em dilatar seu vocabulário artístico. Na faculdade firmou um grupo chamado Selvática Ações Artísticas (espaço hibrido de arte e produção artística). E fala sobre o incentivo às artes vivas que precisam ter sempre o corpo vivo em cena além de toda a técnica em ação para o espetáculo acontecer, diferente do cinema, por exemplo, que é ativado por uma maquinaria.

Ficha Técnica

  • Concepção, coreografia e performance: Mari Paula
  • Orientação coreográfica: Airton Rodrigues e Ángela Donat
  • Orientação dramatúrgica: Giorgia Conceição, Leonarda Glück e Ricardo Nolasco
  • Textos: Leonarda Glück e Luis Pablo Beauregard
  • Iluminação: Trio Desenho de Luz
  • Direção musical e Trilha sonora: Fernando de Castro
  • Figurinos: Mari Paula
  • Fotos: Cayo Vieira
  • Vídeo: Livea Castro Calvo
  • Produção e Coordenação: Jorge Schneider e Simone Bönisch – ABABTG
  • Realização: Funarte – Ministério da Cultura, Brasil

 

 

Author

Andréia Evangelista é Geminiana com ascendente em Libra e lua em Peixes, da leva de 1983, mestranda em Artes Visuais pelo PPGAV- EBA - UFRJ (Pesquisa: "O corpo como continente de espectros: o contorno nos processos performativos"), atriz, bailarina, e coreógrafa formada pela CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) – 2005, licenciada em dança pela faculdade Angel Vianna – 2010. Colaborou como bailarina no núcleo de pesquisa da FAV (Faculdade Angel Vianna), com a direção de Ana Bevilaqua. No teatro foi premiada como melhor atriz com a peça "Viva o Cordel Encantado" de autoria e direção de Benvindo Sequeira - 2006. Participou por três anos do festival de performance em Cuba, pelo qual apresentou trabalhos em dança contemporânea, teatro físico e cavalo marinho (dança folclórica da região zona da mata de Pernambuco). Atualmente ministra aulas de dança contemporânea e terapia através do movimento.

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