Música: João Bosco Em “Abricó-De-Macaco”

Novo disco do cantor, compositor e violonista está disponível nos aplicativos de música nesta sexta, 15 de maio, e tem 16 faixas, duas delas inéditas. DVD, dirigido por Fernando Young, fica liberado online, até 19 de maio, no canal do YouTube de MPB da Som Livre. Álbum é uma co-produção da gravadora com a MP,B Discos e o Canal Brasil e sai em formato físico em 22 de maio.

Créditos Marcos Hermes

Já se conta quase meio século da estreia fonográfica de João Bosco. Desde que despontou no lado B de um compacto do Pasquim com “Agnus Sei” (feita com seu parceiro mais constante, Aldir Blanc), João transvê a arte como forma de alento e de elevação. Se fosse “só” isso já estaria de bom tamanho. Porém um ponto primordial, no caso de João Bosco, é que desde aquele distante ano de 1972 ele também compreende a arte como reação.

Ouça AQUI o CD “Abricó-de-Macaco”

Ladeado de Aldir e de tantos outros parceiros – de Antônio Cícero e Waly Salomão a Chico Buarque, de Belchior a Paulo Emílio, passando por Abel Silva, João Donato, Caetano Veloso, Capinan, Nei Lopes, João Bosco pensa sua música, a partir de seu singular violão, como instrumento de contundente contestação.

Assim como craques de outros saberes e fazeres artísticos (Glauber Rocha, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Chico Anysio e Graciliano Ramos), João sempre tratou das miudezas e profundezas – incluindo os desvios – da alma brasileira. Com a diferença, em comparação com os aqui citados, que ele segue vivo e atuante.

Em tempos de calmaria social a música de João Bosco já seria significativa. Agora, num arrastado momento de naturalização de discursos e práticas fascistas, ela é essencial.

Neste novo trabalho – digno de figurar na prateleira das grandes obras, que, logo de cara instigam e já dizem a que vêm -, a provocação inteligente sobressai, de arrancada, no título: “Abricó-de-Macaco” (Som Livre / MP,B Discos). A alegoria, proposta em parceria por João e seu filho Francisco Bosco, é tão complexa quanto bela. Um fruto tropical fechado, de casca dura, em forma de esfera; ameaçado de extinção, entressonha a esperança de uma estação vindoura para enfim abrir-se em flor. Se algo aí lhe soa familiar, não se espante. Afinal, é de um Brasil mergulhado em obscurantismos, com sua potência incubada num banzo, de que falam os autores.

É obra de espírito amplo, evocando a inesgotável fortuna de conhecimentos gestada nas bordas de uma nação continental. O que atravessa as 16 faixas aqui bordadas é o ouro cultural emanado das periferias do Norte (presente em “Senhoras do Amazonas”, parceria de João com Belchior) ou do Nordeste (pontuada em “Forró em Limoeiro”, do genial Jackson do Pandeiro, em espécie de suíte nordestina, com o perfume de Sivuca, João do Vale, Marinês e Gonzaguinha), do Brasil real, das periferias, dos subúrbios e dos morros cariocas. Aragem tão funda que IBGE nenhum é capaz de apurar ou traduzir.

Portanto, não é ocasional o encontro entre Os Tincoãs, de Mateus Aleluia e Dadinho, com Dorival Caymmi e Silas de Oliveira, na bem sacada junção de “Cordeiro de Nanã” e “Nação” (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio), consagrada na década de 1980 pela iluminada voz de Clara Nunes. Assim como não são nada fortuitas as menções ao jongo de Aniceto do Império, à ancestralidade da Rainha Quelé (Clementina de Jesus), aos choros de Pixinguinha e Paulinho da Viola, aos sambas de Donga, Candeia e Sinhô, às macumbas de João da Baiana – todos presentes em “Cabeça de Nego”.

Da mesma forma, no mesmo DVD cabem um Brasil que tem como um de seus maiores capitais a diversidade e o sincretismo religiosos (“Terreiro de Jesus”) e um Brasil em que muito malandro – seja de colarinho branco, seja eleito pelo voto popular – se julga mais malandro do que a própria malandragem (“Profissionalismo É Isso Aí”).

Ouça AQUI a versão comentada do álbum

Tal e qual num sonho de Brasil mais humanizado e aberto ao encontro, este DVD é feito de pontes. Elas se erguem, por exemplo, em “Chora, Chorões”, relembrando o dia em que o choro de Ernesto Nazareth, Waldir Azevedo, Zequinha de Abreu e outros mestres desfilou na avenida, no antológico samba-enredo apresentado pela Estácio de Sá, em 1985.

Neste extenso novelo de uniões em forma de alumbramentos, há também o elo entre a música norte-americana – pelo blues ou pelo jazz – e a música brasileira. Todas bebendo na mesma fonte, a música negra. É só ouvir o que João Bosco faz com “My Favorite Things” (clássico eterno de Rodgers e Hammerstein), com “Blue in Green” (disponível como faixa bônus, apenas na internet) ou com “Água de Beber”, de Tom e Vinicius, vertida em afrosamba à la Baden.

Todas elas, assim como a maioria das músicas deste DVD, são regravações. O que, no caso de João, jamais pode ser definido como um “cover”. Dono de identidade artística tão ímpar e marcante, mesmo quando apresenta obras que não são de sua autoria, João Bosco é um intérprete-compositor. Por suas mãos ou sua voz, canções que não são inéditas apresentam-se absolutamente novas. Na mesma linha do que ele fizera recentemente com “Clube da Esquina nº 2” (Milton Nascimento/ Lô Borges/ Márcio Borges) ou com “Coisa nº 2” (Moacir Santos). Seu violão e as divisões rítmicas de seu canto se reafirmam, mais uma vez, como algo da ordem das raridades.

Sem prejuízo, este frescor é revelado tanto nos números em que João Bosco vai só de voz e violão, como quando ladeado pelos excepcionais músicos com quem vem tocando há tempos: Ricardo Silveira, na guitarra; Kiko Freitas, na bateria; Guto Wirti, no contrabaixo. Confirmação de que com o passar dos anos o sujeito pode combinar maturidade com um espírito renovado e renovador – inspirado nos versos “A minha casa vive aberta/ Abri todas as portas do coração”, de “Água de Beber” -, João acerta ao se aproximar de gerações mais novas do que a sua. Isso se reflete nas participações das vozes de Alfredo del Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda, do acordeon de Marcelo Caldi, do violão 7 cordas de Marcello Gonçalves e do clarinete mágico da israelense Anat Cohen.

Por fim, além de “Abricó-de-Macaco”, a outra faixa inédita é “Horda”, feita também em parceria de João e Francisco Bosco. Nela, evocam-se inspirações de “The Duke” – sobrenatural gravação de Miles Davis e Gil Evans em tributo a Duke Ellington – e do inacreditável álbum “The Blues and The Abstract Truth”, de Oliver Nelson. Em tempos de invenções bizarras e distorcidas, como “pós-verdades” e afins, João e Chico jogam do mesmo lado do campo que Manoel de Barros, escultor do seguinte verso: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”. A tabelinha entre pai e filho faz lembrar, e não é de hoje, de um imaginário encontro entre Zizinho (João) e Rivaldo (Francisco): dois craques de tempos diferentes, simultaneamente cerebrais e poéticos, incapazes de propor uma jogada burocrática ou pedante. Jogadores irrequietos e extraclasse, que, parafraseando o poeta Manoel, não gostam nem do som nem da palavra acostumada.

Veja o clipe “Abricó-de-Macaco”:

Author

Musicalmente eclética, apaixonada pela diversidade dos estilos, das festas e festivais, amante de uma boa música, principalmente das batidas eletrônicas. #Música #MúsicaEletrônica - Nunca se precisou de drogas para senti-la, a essência da batida, a sonoridade toca a alma de um jeito que não da pra ficar parado! "Quem não sente a melodia acha maluco quem dança"!!!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *