Dançar, um movimento inútil

Ilustração: Rodrigo Cardoso

O elemento fundamental da dança é o movimento. Quando pensamos em um corpo que dança, pensamos necessariamente em um corpo que se move.

Porém nossos corpos estão quase o tempo todo em movimento, o que não quer dizer que estamos dançando: andar nem sempre é dançar, acenar também não, até quando saltamos ou giramos não necessariamente estamos dançando.

O que nos leva a pensar: qual é a principal característica de um movimento dançado?

A música, a beleza dos movimentos, o ritmo? Os passos, a coreografia, a fluidez?

Bom, todos nós já dançamos ou já vimos alguém dançar sem música, sem beleza (se é que existe dança feia), no improviso e até sem ritmo. Seria preciso então encontrar outra definição para o movimento dançado, algo que nos leve além do óbvio.

Penso que o que há de mais particular nos movimentos que compõem uma dança é que eles não têm uma intencionalidade direta, em outras palavras, isso quer dizer que eles não se prestam a atingir nenhum objetivo. Assim as ações de andar, acenar, saltar e girar podem compor uma dança desde que não tenham uma intenção clara: é preciso andar para lugar nenhum, acenar para ninguém, saltar sobre nada, girar sem motivo!

José Gil, um grande filósofo da dança, explica isso da seguinte maneira no seu livro Movimento Total: no gesto comum, a ação impõe do exterior um deslocamento ao corpo; no gesto dançado, o movimento vem do interior, ou, como afirma o grande mestre de dança Rudolf van Laban, a ação exterior é subordinada ao sentimento interior.

O que a dança promove, portanto, é uma subversão dos movimentos do cotidiano destituindo eles de uma finalidade, tornando-os inúteis mas não menos necessários!

Se no dia-a-dia eu ando para chegar em algum lugar, eu aceno para me comunicar, eu salto para não cair, eu giro para olhar quem passou, na dança, os movimentos importam menos pelo que eles servem e mais pela forma e trajetória que eles têm, mais pelo que transmitem em termos de sensação. Nesse sentido, estar ou não em estado de dança não é privilégio daquele que se move: um olhar direcionado para a forma e para a trajetória e não para o porquê de um determinado movimento pode enxergar a dança onde ela aparentemente não existe!

É dessa maneira que, em uma cena do filme Beleza Americana, de Sam Mendes, um saco plástico dança conduzido pelo vento e acompanhado pelas palavras do personagem Ricky Fitts:

“Foi num desses dias, quando está prestes a nevar… e há uma eletricidade no ar. Você quase pode ouvir. Certo? E este saco estava… dançando para mim… como uma criança chamando para brincar. Por quinze minutos. Foi quando eu entendi que havia… essa vida toda por trás das coisas”

Que agucemos nosso olhar para a dança e para a vida que há nos movimentos inúteis!

DANIELE CASTRO

Author

Daniele Castro estudou comunicação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atuou como bailarina na Cia Étnica e, desde 2010, é pesquisadora de dança. Formou-se mestra em Estética e Tecnologias da Comunicação na Universidade Federal Fluminense e concluiu o doutorado no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, com pesquisas sobre corpo e dança contemporânea. É autora de diversos artigos publicados em revistas especializadas e apresentados em congressos da área.

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