NOS CONTOS DE GRIMM, DETALHES QUE NINGUÉM (ME) MOSTROU

Toda criança da minha geração era alimentada em suas fantasias com os desenhos de Walt Disney. Não só as animações longas, que ganhavam as telas de cinema, mas também os desenhos curtos que passavam na TV, dos famosos personagens Mickey, Donald, Pateta e outros, na grade da Disneylândia, que passava semanalmente na TV. Sem falar no Clube do Mickey, outro programa de TV que era febre entre a criançada.

Mas a sensação de deslumbre eu experimentava mesmo nas animações para o cinema: “Bambi”, “Branca de Neve”, “Alice no País das Maravilhas”, “Mogli, o Menino Lobo”, entre outros, e “Cinderela”, até hoje meu filme Disney preferido, pela beleza dos traços artesanalmente desenhados.

Mas “Cinderela” se revelaria para mim com uma história séria, menos idílica e mais violenta, quando, apaixonada pelo filme de Walt Disney, quis ler o conto original no livro dos Irmãos Grimm.

“Cinderela”, dos Grimm, não é uma história para crianças. Começa na despedida entre filha e mãe no leito de morte, passa pela descrição das lágrimas com que a filha se debruçou sobre o túmulo da mãe e, depois, sobre o ramo de uma nogueira que plantou na sepultura, fazendo nascer uma linda árvore. Para uma criança, a perda da mãe e a recorrente saudade e tristeza da filha, descritas no conto, era um sensibilizador que levava a história da órfã maltratada a uma outra dimensão emocional. E havia outras pequenas diferenças entre o conto e o filme. A mais brutal: a ambição da madrasta e das irmãs levada ao extremo, a ponto de mutilarem-se os pés das irmãs para caberem no sapato de cristal, sendo levadas – cada uma a seu tempo – com o sangue a escorrer-lhes pelos pés a denunciá-las.

O encontro com a obra dos Irmãos Grimm se configurava reveladora. Era como ler a “verdadeira” história, aquilo que não nos contavam os pais nem tratavam os filmes infantis. Como já gostasse de ler, tinha a inocente sensação de que, nos contos de Grimm, haveria verdades ocultas que me seriam reveladas. Foi, talvez, o primeiro momento em que criei com o narrador de um livro uma relação de cumplicidade, o que acho necessário para todo bom mergulho literário que se preze. E, embora percebesse que havia muitos elementos fantásticos nos contos, ainda assim a realidade daquela narrativa me atraía. Mais velha, atrairia mais ainda, quando entenderia os traços humanos reais e subjetivos que servem de metáforas e de alegorias para os elementos humanos reais.

Naquele momento, entretanto, a delícia era descobrir os desfechos diferentes das histórias manjadas: como a avó de Chapeuzinho cozinhou o lobo ao invés de ser devorada (e, aqui, cabe dizer que, quando li os contos de Perrault, também me surpreendi porque o lobo come as personagens e fim…não há final feliz nem para avó nem para a neta, que morrem devoradas) ou como Branca de Neve acorda não porque o príncipe lhe beija mas porque ele, ao derrubar acidentalmente seu caixão, faz saltar para fora de sua boca o pedaço da maçã envenenada que engolira. Eram um prazer secreto minha leitura, nascido nas confidências das narrativas, que me destacava entre as amigas da escola: eu sabia algo sobre a origem da história que ninguém sabia. Na minha fantasia, era como se eu tivesse um manuscrito revelador.

Entretanto, não se abria mão do tom mágico nas histórias, que sugeria também uma certa espiritualidade. Em “Cinderela”, por exemplo, na nogueira regada com suas lágrimas, que cresceu ao lado do túmulo da mãe, pousavam passarinhos que alertavam o príncipe das evidências que ele não conseguia notar. Seria a nogueira mágica? Seria uma manifestação do amor da mãe pela filha que vencia as barreiras entre o mundo físico e o espiritual? É uma leitura que cabe.

Os Grimm possuem outras tantas histórias menos conhecidas ou tão conhecidas quanto a dessas princesas que, no entanto, ficaram eternizadas nas próprias páginas de seus livros, sem ganharem nenhuma animação ou filme que as materializasse para nós.

A minha preferida é uma das menos conhecidas, talvez, e fala, de certa forma, de espiritualidade, chamada “Pele de Urso”.

É a história de Miguel, um soldado que, após a guerra, volta para casa e, descobre que seus pais já eram falecidos, sendo rejeitado pelos irmãos. Sozinho no mundo e sem saber nenhum outro ofício, Miguel pensa que morrerá de fome. Até encontrar um fidalgo com quem faz um pacto: o homem lhe dará dinheiro aos montes se ele aceitar passar sete anos sem tomar banho, sem pentear os cabelos, sem cortar as unhas, sem fazer a barba e…sem rezar. O fidalgo era o diabo em pessoa e entrega a Miguel um casaco que possuía os bolsos sempre cheios de moedas de ouro e, também, uma pele de urso que lhe serviria de cama e cobertor porque, durante o tempo do pacto, ele só poderia dormir no chão. E o solta errante pelo mundo, esperando que sua aparência física cada vez mais repulsiva o isole dos homens e que o fato de não ter abrigo o sujeite a perigos que culminem em sua morte. Se antes do final do tempo aprazado Miguel morresse, sua alma pertenceria ao diabo. Entretanto, Miguel era um homem bom, que tinha compaixão pelos outros e, com seu dinheiro tira diversas pessoas do desespero nos anos de sua peregrinação. A elas pede, em retribuição, que rezem por ele, já que ele próprio não poderia fazê-lo. Uma das pessoas a quem salva, um velho, em gratidão, oferece-lhe uma das filhas em casamento. Enquanto duas filhas rejeitam a proposta do pai de casarem-se com o homem de aparência monstruosa, a mais nova aceita, por enxergar a bondade em seu coração e vive os anos seguintes à espera do noivo que, até o fim do contrato que fizera, precisa continuar a andar. Miguel se reencontra com o diabo ao final dos sete anos, salvo dos perigos pelas orações daqueles a quem ajudou, readquire sua forma natural, devolve o casaco e depois segue na direção da casa da noiva, após desenterrar as moedas que, durante todos esses anos, foi escondendo em seus caminhos. A história não tem um final feliz porque as duas irmãs que o rejeitaram, em desespero, dão fim a suas vidas e suas almas ficam entregues ao diabo. Mas, para mim, é uma história de vitória. A história de um homem comum e sozinho que, ao perceber o mal a tentar ludibriá-lo em seu momento de fraqueza, encontra um jeito de vencê-lo. E vencê-lo significa vencer a si mesmo, usar sua valentia, sua inteligência e sua fé contra o que podia destruí-lo. Um homem que concorda em silenciar sua fé mas não a perde pelo caminho e encontra um jeito de, através dos outros, manter-se em contato com a espiritualidade. Um homem cuja essência é boa e, por isso, a compaixão e a solidariedade são gestos naturais e despretensiosos e cobrem-no de proteção. Um homem cujo coração atrai o olhar amoroso do outro, fazendo a gratidão e a piedade vencer o nojo e o medo. Um homem que conhece a repulsa nas aproximações que faz, mas não se acovarda e, com suas atitudes, transforma a resistência em amor.

João & Maria

Há tanto nessa história que me sensibiliza que posso escrever só sobre ela. Se me permitem uma confidência, digo-lhes que, num contexto pessoal, ela me volta várias vezes ao pensamento e repito o gesto de Miguel: peço aos outros que torçam/orem por mim quando eu própria me encontro numa difícil caminhada ou quando minha fé silencia.

A questão é que essa história e as dos outros contos possuem vários elementos humanos muito fortes com que todos nos identificamos: abandono, medo, desespero, maldade, repulsa, piedade, compaixão, solidariedade, o bem e o mal em nós. E, mesmo que possuam um elemento fantástico qualquer, remetem-nos a nossa essência humana.

Essa é a mágica da Literatura. Seja nos livros infantis como nos adultos. Seja nas histórias de ficção fantástica como nas mais reais. É essa conexão com nossa essência, nossos sentimentos, nossos medos, nossos pensamentos amorosos ou proibidos, que nos faz mergulhar a mente e a alma na leitura de um texto de nosso real interesse. Nem sempre experimentamos as distâncias mais profundas mas, de um jeito ou de outro, nunca voltamos iguais à superfície. Ainda bem.

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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