Às quartas – Para um cavaleiro

Foto: Mohamed Nohassi, em Unsplash

 

Se abro a janela para cumprimentar o segurança, no portão da garagem do trabalho, sinto o cheiro de estrume, vindo do terreno ao lado. Ali, dois cavalos comem grama pela manhã. Um, branco e magro. O outro, marrom, imponente. Às vezes, trotam para longe, buscando alimento melhor.

O cheiro do estrume me lembra das baias em Valença e em Gericinó. Você dizia gostar de sentí-lo, veja só… Amava cavalos! Escolheu a Cavalaria para satisfazer o desejo do menino pobre de montá-los e de, um dia, possuir um.

Você era um homem duro, um militar vocacionado, mas sua escolha tinha essa origem poética. Isso embaçou meu olhar para o que viveríamos. Só adolescente, entenderia o extremo do seu rigor.  Naquela época, não. Eu só via sua ternura. Você me levava ao quartel para estar com os cavalos. Eu podia acariciá-los, beijá-los na cara, enrolar as crinas nas pontas dos dedos.

Você separava os mais dóceis para eu montá-los. Da sela, eu dominava o mundo, mesmo os pés não alcançando o estribo. As mãos seguravam a rédea frouxa. Pensava guiar, mas, não, era você. Na volta, o cocho estava cheio. Pequena, agachava para vê-los comer, com seus dentes enormes. Os aromas se misturavam: capim, estrume, terra. Eram aromas de liberdade e silêncio.

Não gostava de ir ao quartel em dia de cerimônia. Achava chatos os rituais. Mas você me ensinou a montar e me deixava, uma vez nas férias, levar amigos. Andávamos a cavalo. Comíamos o rancho, misturados aos soldados. Corríamos pelo descampado, recriando, mais livres, as brincadeiras de quintal. O dia passava, morno e rápido, em todos aqueles verões.

Foto: Juliane Liebermann, em Unsplash

Lanchávamos em sua sala e eu ostentava o pequeno privilégio de ser filha do comandante e de poder ter visitas. A sala em mogno cheirava a sítio. O amadeirado da escrivaninha, em que se punham os biscoitos e a limonada, dava à reunião ares de café colonial. Da janela, víamos os cavalos soltos no enorme cercado, sendo conduzidos às baías antes que o sol se apagasse.

Estávamos fixos na mesma cena: o animal de corpo musculoso e andar elegante. O animal mais lindo que existia. Achávamos, num tempo em que eu e você olhávamos para o mesmo horizonte.

Você não suportaria saber do abandono dos cavalos que vivem na rua do meu trabalho. Possuem um olhar melancólico. Seguem errantes pelo bairro. Não sei lidar com eles. Faço cerimônia de tocá-los.

Sempre que sinto o cheiro de estrume pela manhã, procuro pelos animais. Mas, também, procuro você. Gostaria que estivesse aqui para ensinar-me, de novo, a demonstrar meu carinho por eles. Gostaria que tivesse aprendido a demonstrar melhor o seu por mim, quando deixei de ser criança.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

2 comments

  • Aninha, tive a oportunidade de desfrutar alguns verões em Gericinó com você naquelas tardes maravilhosas. Adorei ler a crônica para o seu pai. Onde ele estiver estará feliz em ler sua crônica! Bjs

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