Às quartas – Enquanto o mundo pede pressa

Foto: Aron Visuals, em Unsplash

 

Pedro Américo da Silva. Seu nome apregoado pelo cartório. Vigilante na empresa da rua transversal. Chegou às 8:07h à audiência, infartou às 8:10h. Caiu no chão, com uma expressão lancinante, agarrado à mochila jeans.

Era autor numa ação. Fora demitido sem o pagamento das verbas rescisórias. Cumpriu seu turno no novo emprego, naquela madrugada, e veio, sem dormir, para a audiência marcada há meses. Não pedira dispensa para não ser descontado. Veio a pé, economizando o táxi. Na entrada do prédio, recebeu a ligação da advogada: “se não chegar em cinco minutos, o juiz arquivará seu processo”.

Estava atrasado. Os elevadores demoravam a escoar a multidão no térreo do fórum. Subiu, por nove andares, as escadas, pulando degraus, como pulara a refeição da manhã, preservando o dinheiro do ônibus que o levaria, depois, para casa. Correu, como viera pelas ruas, num trançado entre os carros engarrafados na Avenida Chile. Entrou na sala de audiências, avermelhado pelo esforço, no prazo concedido. Sem fôlego, diante de todos, ruiu, derrubando uma cadeira. Abriu-se um clarão em torno do corpo retorcido, sufocado, que gritava por ajuda, embora não pudesse verbalizar.

A sala esvaziada. Bombeiros, médico. Massagem cardíaca, injeções de adrenalina. Seringas, embalagens, agulhas, toalhas. Pedro saiu sem vida dali, mas com o coração batendo. Sem pedir desculpas pelo atraso de minutos. Sem ouvir o pesar do patrão por precisar lançá-lo à sorte sem a remuneração dos dias trabalhados. Sem contar sua história nem qualificar-se nos autos.

Foto: Sandra Dempsey, em Unsplash

Adiaram-se as sessões por horas, para a higienização do ambiente. Os presentes poderiam voltar após o almoço.

O homem seguiu sozinho na ambulância. Sua advogada substituía um colega e não conhecia o cliente. Mas deveria haver uma família. Na mochila jeans, um crachá, mais nada. No autos processuais, a informação: era casado.

Pedro, 43 anos, vigilante, brasileiro, casado. Pouco dinheiro na carteira: o suficiente para duas passagens. A empresa cujo nome estava no crachá informou o telefone no cadastro de empregados. Uma criança atendeu à ligação. Sua pequenez se adivinhava no tom com que disse: “Pedro é o papai. Eu sou o Fabinho”.

O agente de segurança interrompeu o telefonema. Precisou levar a mochila embora. “O cara não resistiu, não. Morreu na ambulância”. “Fabinho…”, filho de Pedro, órfão na primeira infância. “Pode chamar sua mãe ao telefone, meu amor?”.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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