Às quartas – Em casa

Foto: Eduard, em Unsplash

 

Naquela hora específica em que a casa sossega, ainda é dia.

O marido não chegou da academia. A filha não voltou da faculdade. Repouso as chaves do carro sobre a mesa. Tiro os sapatos e toco o piso gelado da cozinha com os pés.

Sossego em mim também. Desacelero. Percebo tanto o silêncio que o som do trilho da janela se destaca. Abro o vidro para refrescar. Um rangido mínimo de madeira se percebe quando caminho, leve, pela sala. O estalo no teto, por trás da clarabóia, não me foge à percepção. Ligo o chuveiro, a água corre os cabelos, o corpo, gela e amorna antes das bolhas de sabão.

Nessa hora, quando estou só no mundo, o mundo está sob controle. Se o telefone vibra, escolho se atendo. Se a campainha toca, escolho se abro a porta. Celebro os minutos, em silêncio. Em breve, tudo se maculará: vozes se misturarão e eu, entre as notícias do dia, dividirei as desimportâncias: fez calor, o colega adoeceu, o ônibus atrasou, comi brócolis.

Há algo de sacro nesse instante inteiro para mim. O tempo do pente no cabelo, do creme na pele, de estender a toalha molhada e, pela porta aberta, de espantar o vapor do banheiro. Perfumo a casa com o cheiro do banho. Percebo a brisa mais forte, criando uma corrente de ar.

Não ligo rádio nem tevê. Não olho as mensagens. Debruço na janela, procurando os passarinhos alojados nas amendoeiras. Vejo os primeiros morcegos em vôos rasantes, atrás das sobras das frutas. Os postes acesos mas a noite ainda vacilante, sob um rastro de claridade natural.

Um carro freia, distante. Risadas das crianças na volta da escola. Um pipoqueiro ainda mantém acesas as luzes do carrinho na caminhada para casa.

Estou abrigada. Cerca-me tudo que é íntimo. O cheiro doce da pipoca. A música da novela vinda do apartamento de cima. O som do giro da chave na porta da cozinha.

Chegam. Primeiro a filha. Depois, o pai. Minha tribo. Ela amarga uma demora na resposta a uma mensagem enviada mais cedo. Bate a porta do quarto, contrariada. Na juventude, os amores são urgentes. Ele reclama do calor, da gente que não limpa os aparelhos depois da série de exercícios. Entra no chuveiro, sem esquecer o beijo da chegada.

A eles assisto com um discreto sorriso. São o teto da minha casa. Trazem-me a certeza de que pertenço a esse lugar. Mas, enquanto se arrumam, aproveito a última brisa antes de a lua se destacar. Só minha. Esse silêncio profundo, onde meus pensamentos se ouvem, onde minha respiração soa mais forte, é recanto, oxigênio.

Sinto pena de a noite ter caído. E sinto paz.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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