Às quartas – A namorada

Foto: box-fox55, em Pixabay

 

Jorge não tinha estudo mas tinha boa lábia. Dava jeito em briga de parentes, amaciava policial nas batidas nas festas dos amigos, descolava quentinhas para os meninos de rua, entre os comerciantes da região.

Eu bebia minha cerveja quando se sentou com a namorada na mesa ao lado. Dois copos depois, pegou nas mãos da moça.

– Alguma coisa acontece no meu coração, enquanto estamos aqui  e seguro sua mão.

– Pára, Jorge. Que brega!

Ele espichou o olhar para minha mesa, conferindo se eu assistira ao nocaute. Fingi que não, com a cara no celular.

– Longe de você, só vi o mau gosto, mau gosto.

A mulher puxou as mãos rudemente. Tirou o batom da bolsa para retocar os lábios. Levantou-se.

– Vou perder a condução.

– Levo você, gata. Assim… – percorreu, em pensamento, os versos da música – te posso curtir numa boa.

Triunfou mentalmente. Encaixou tudinho. Mas ela não cedeu. Estava impaciente. Os olhos apontados para longe, vigiando os ônibus no ponto.

– Não precisa. Tchau!

Jorge relaxou na cadeira, pediu mais uma bebida ao garçom. Olhou para mim, queria saber mas não perguntou. Fui dizendo.

– Mandou mal. Nem romântica essa música é.

Jorge tinha jogo de cintura. Mas era uma pessoa equivocada. Associava coisas que, nem sempre, tinham relação. Passou mal pelo Fundamental. Nunca entendeu como aplicar “conjunto”, da matemática escolar. Guardava garfos e facas misturados. Pinçou Caetano no conjunto dos cultos mas esqueceu da interseção com os românticos. Que escolhesse os versos certos!

Ela era a primeira conquistada fora do baile. Sentaram juntos no metrô. Comportada, lia um livro grosso e usava um vestido de viscose até o joelho. Exigia outra abordagem. Ele puxou conversa e deu sorte de parecer engraçado. Quando as diferenças deixaram de disfarçar-se sob a alegria do início, precisou encontrar um novo jeito de impressioná-la. Caetano o levaria à próxima fase, pensou.

Enquanto me contava isso, ela voltou e se sentou conosco.

– O 393 não passa! Me dá uma garrafa de água gelada? Está muito quente.

– Eu te levo, já disse. – ele insistiu.

Paguei minha conta, disfarçando um compromisso. Quando saía, tocou Anita. Antes que o garçom pudesse chegar ao balcão, onde estava o rádio, para mudar a estação a pedido de Jorge, a namorada já tinha jogado os cabelos para o lado e empinado o bumbum.

– Senta, senta, senta, senta, senta, senta – repetia, rebolando sobre Jorge.

Meu amigo sentiu alívio. Guardaria Caetano para uma próxima ocasião. Estava garantido. Levantou-se para dançar também. Quando passei por ele, me disse ao pé do ouvido:

– Ela é o avesso do avesso do avesso do avesso.

 

ANA LÚCIA GOSLING

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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