GIOVANA MADALOSSO: a autora de A teta racional é a convidada desta semana do AC Encontros Literários

A escritora Giovana Madalosso. Foto: Renato Parada.

 

Giovana Madalosso (@gmadalosso) é autora de Suíte Tóquio, romance finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura 2021, traduzido para diversos idiomas e em adaptação para o cinema. Também é autora de Tudo pode ser roubadoA teta racional e do livro infantil Altos e baixos. É colunista da Folha de São Paulo e uma das idealizadoras do movimento Um grande dia para as escritoras, que registrou mais de 2.000 escritoras em 50 cidades do Brasil e do mundo em 2022.

Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.

 

ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?

Giovana Madalosso: Foi tão cedo que nem tenho consciência da ocasião. Aos sete anos, eu já era uma leitora ávida. Não conseguia nem me desapegar da minha biblioteca. Quando íamos para a praia, eu colocava todos os livros e gibis num saco de lixo e viajava feito um papai noel, carregando tudo comigo. Quando tinha onze anos, minha mãe me deu O apanhador no campo de centeio. Desde então, todos os momentos da minha vida foram acompanhados e marcados por certas leituras.

 

AC: Como é sua rotina de escritora? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?

GM: Escrevo todos os dias, mas não necessariamente literatura. Ganho a vida também como colunista e redatora. A escrita literária vem sazonalmente, e são meus dias de maior satisfação. Não digo que são meus dias mais felizes, porque por vezes o trabalho é árduo e frustrante, mas quando flui não há nada igual. Nessas horas, eu desapareço, torno-me o personagem, estou em outro lugar. E na alteridade descanso da minha própria dor. Quando o texto está pronto, costumo mostrar para alguns amigos ou para o meu companheiro.

 

A teta racional: coletânea de contos foi lançada em 2016. Foto: Divulgação.

 

AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?

GM: De todo canto. Costumo dizer que é preciso abrir a pista para as ideias pousarem. Andar com os olhos e os ouvidos atentos, com a história girando dentro de si. Já cheguei a tirar inspiração de uma caixa de remédios que encontrei esquecida dentro de um táxi. A vida é pródiga.

 

AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?

GM: Esse fantasma existe e, infelizmente, vem apavorar-me com frequência. Acredito que apavore todos os escritores, não importa há quantos anos pratiquem a escrita. Quando isso acontece, exercito o texto de outra maneira. A criação literária não acontece só na página em branco. Pedalo pensando nos personagens, desenho linhas narrativas, faço leituras correlacionadas. E depois volto para a página. Nada acontece sem alguma insistência. Outra coisa que é bom pensar: não se escreve uma boa página sem as ruins que vieram antes. Tudo faz parte do processo.

 

O romance Suíte Tóquio recebeu indicações ao Jabuti e ao Prêmio São Paulo. Foto: Divulgação.

 

AC: Um livro marcante. Por quê?

GM: Escute as feras, de Nastassja Martin, por jogar por terra as convicções que ainda restam em torno do sucesso do homem contemporâneo.

 

AC: Um escritor marcante. Por quê? 

GM: O romeno Mircea C?rt?rescu, por conceber um universo limítrofe entre o real e o onírico.

 

AC: Sei que você também atua como roteirista. O que poderia nos dizer sobre essa atividade?

GM: Tenho atuado pouco como roteirista. É inviável praticar a escrita de um romance e de um longa-metragem ou de uma série ao mesmo tempo. Não dá para acordar todos os dias e tomar café da manhã com dez personagens de um lado e dez do outro. Estou priorizando a literatura e abrindo exceção apenas para adaptar para o audiovisual alguns contos de minha autoria.

 

AC: Você já declarou o seguinte: ¨Eu sou uma feminista, a minha literatura não.¨ Poderia desenvolver essa ideia?

GM: Chamar a escrita que questiona padrões de literatura feminista aprisiona e apequena essa escrita dentro de um gênero. Isso é exatamente o contrário do que queremos. A escrita que discute questões do feminino é literatura universal.

 

Tudo pode ser roubado: submundo, drogas e sexo. Foto: Divulgação.

 

AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?

GM: Estou começando um romance. Então, nos próximos meses, não haverá nada de novo mas, no ano que vem, acho que estarei de volta às livrarias. Ao menos espero.

 

AC: Entre os seguidores do canal de Literatura do Portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?

GM: Escrever a partir da angústia, com honestidade, sem se preocupar com o que os outros vão pensar. Antes de ser publicada, ouvi muitos comentários como esse tema não é bom. Isso não existe. Da mesma forma que toda dor é legítima, todo tema é legítimo e instigante. O que faz diferença é a forma de abordá-lo. Por isso, também recomendo muita escrita e reescrita.

  

AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autora.

GM: Segue trecho no conto Melanomas, publicado na coletânea Partes do corpo pela TAG livros.

Quando sai? do banheiro, acendi a luz do teto, me olhei nua no espelho do quarto. Aquela era eu. Ha? quanto tempo na?o me via direito? Talvez desde que namorei com o u?nico homem que tive depois do meu marido. Um sujeito que, quando bebia, me ofendia, depois mandava flores se desculpando. Ao assistir ao de?cimo buque? murchando junto com a minha autoestima, terminei com ele e nunca mais arrisquei sair com outro da sua gerac?a?o. Talvez homens mais novos fossem menos folgados, mas homens mais novos na?o olhavam para mim. Nem eu olhava para mim. Aquele era o que?, o meu de?cimo, vige?simo corpo? Eu ja? tinha sido feto e bebe?. Menina e adolescente. Jovem explodindo na beleza dos dezoito anos. Mulher rija de trinta. Gestante. Ma?e com barriga de cesariana. Mulher com barriga de cesariana sob barriga de pa?o. Mulher com todas essas mulheres dentro. E com o peso que isso tem: na pele, nos mu?sculos, em tudo o que cai por entrega ou forc?a da gravidade. Mas ali, na frente do espelho, naquele momento, eu era a u?nica que importava: a u?ltima. E resolvi me conhecer. Rugas nos olhos e na testa, la?bios grossos. Peito magro, seios pequenos, o direito um pouco maior do que o esquerdo. Brac?os fla?cidos. Ma?os com manchas e veias salientes. Quadril largo. Bunda cai?da, menor do que a barriga. Pernas torneadas, salvas pelas caminhadas e pelo pilates. Pentelhos castanhos e brancos. E debaixo deles? Talvez eu nem pensasse em olhar, mas lembrei da minha nora. Da u?nica vez em que meu filho apareceu em casa me pedindo dinheiro. Estava sozinho, nervoso. Sentou a? minha frente. Contou que minha nora foi fazer uma pla?stica, o sonho dela era colocar silicone. O cirurgia?o disse que ela deveria costurar o mu?sculo da barriga tambe?m, tinha esgarc?ado no parto e na?o voltaria sozinho ao normal. A recuperac?a?o ia ser meio chata, ela deveria aproveitar para fazer tudo o que quisesse de uma vez, e mostrou o cata?logo da cli?nica. Ela olhou todas aquelas opc?o?es e achou que deveria reformar a… Nessa hora meu filho parou, constrangido, na?o so? pela cirurgia, mas por nem saber que palavra usar. O que um homem vai dizer para a senhora sua ma?e numa hora dessas? Minha mulher achou legal dar um tapa na xoxota? Ele pensou e disse: ela tambe?m resolveu fazer uma ninfoplastia. Voce? sabe o que e? isso? Falei que na?o. Ele buscou mais um tempo por alguma palavra. Ela resolveu reformar a vulva. Lembro que fiquei chocada, nunca tinha ouvido falar nesse tipo de cirurgia. Ela tinha algum… Defeito? Ele disse que de forma alguma, mas andava insatisfeita com o tamanho dos grandes la?bios, achava que eram grandes demais. Mas sa?o… grandes la?bios!, lembro de ter dito, e ele responder que sabia, que na?o via nada de errado, mas ela encasquetou na reduc?a?o. E agora ele na?o conseguia pagar as parcelas da internac?a?o, do anestesista… Fiquei com pena do meu filho e raiva da minha nora, porque quem teve que bancar aquele retrofit fui eu. Mas depois me esqueci do assunto. Ate? que voltei a me lembrar, naquela hora, me perguntando: e os meus? Puxei a cadeira que usava para calc?ar os sapatos ate? a frente do espelho. Sentei, abri as pernas. Lembro que pensei: vovo? viu a vulva. Estiquei a cabec?a para a frente, examinando o reflexo. Eu tinha pequenos grandes la?bios ou grandes grandes la?bios? Eu na?o sabia, na?o costumava ver outros nas capas de revista. Pensei que talvez fossem me?dios. Com certeza desbeic?ados. Uma borboleta velha e roxa pousada no meio das pernas. Os pe?s ossudos pousados no cha?o. Talvez fosse um corpo feio. Ate? repulsivo para algumas pessoas. Cruzei as coxas, tomada por um constrangimento su?bito. Estiquei o brac?o, apaguei a luz do teto, mantendo apenas a do abajur, e enta?o vi as minhas pupilas se dilatando na penumbra. As minhas sobrancelhas se arqueando. E pensei: como algue?m pode achar um corpo feio? Como algue?m pode achar qualquer corpo feio? Ser cego a ponto de na?o enxergar a beleza da ma?quina que rege tudo, ate? a pro?pria ideia de achar um corpo feio?

 

 

O projeto AC Encontros Literários venceu o troféu APPERJ (Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro) 2021 na categoria Encontros Literários on-line.

 

Bem, é isso. Até a próxima!

 

César Manzolillo

Colunista do canal LITERATURA

Clique abaixo para ler as demais entrevistas exclusivas do projeto!

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LIVES
AC Encontros Literários

AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (lives) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).

 

Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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