Observar percevejos

Na pandemia, trabalhando isolada em casa, criei vínculos com a natureza como nunca antes. Passei a prestar atenção em detalhes e processos que me escapavam. Foi a parte boa do distanciamento: adquirir o hábito de observar o “nada” e tropeçar em pequenas descobertas.

Recentemente, flagrei um percevejo fêmea colocando seus ovos no vidro da varanda do meu apartamento. Achei empolgante testemunhar o momento exato. Compartilhei a emoção numa rede social, publicando a foto dos ovos: um colar de pérolas verdes.

Uma amiga me corrigiria, depois: eu chamava “besouro” de “percevejo”. Mas besouro, para mim, era outro bicho: arredondado, preto, maior. O percevejo é verde, voa, tem o corpo no formato de uma pipa e exala mau cheiro se o apavorarmos ou esmagarmos. Curiosa sobre o nome, pesquisei e descobri outro termo conhecido: maria-fedida.

Ovos de maria-fedida. Foto: Ana Lúcia Gosling

Pois bem: ovos de maria-fedida postados, recebi corações e curtidas. Entretanto, dez dias depois, quando, num momento de sorte, fotografei as ninfas recém-saídas dos ovos, o tiro saiu pela culatra: gerei uma pequena onda de repulsa. Associando-as ao percevejo-de-cama, alguns amigos reagiram ao que chamaram romantização do ato. Houve quem postasse foto de Baygon, de brincadeira; houve quem dissesse “é praga!”. Crente do sucesso, com meu flagrante único, tive, na verdade, que acalmar a plateia: era bicho de mato, não era a praga. (Marias-fedidas não se confundem com percevejos-de-cama. Estes, sim, estão no meu rol de insetos-dos-quais-quero-distância-irc).

Logo surgiu quem me relatasse uma batalha contra as pragas em sua casa. Percevejos mordiam as pessoas à noite e obrigaram a família a jogar fora seus colchões porque nem a desinsetização havia sido eficiente em eliminá-los. Filme de terror.

Outra amiga, esotérica, trouxe um significado espiritual ao acontecimento: marias-fedidas são alertas para que cuidemos da nossa “plantação” – família ou trabalho – confiantes, pois o odor afasta o mau.  Distraída, sem saber, eu estava sendo convocada para algum tipo de missão.

Meu irmão se entusiamou por eu deixar percevejos nascerem na varanda mas censurou o fato de eu discriminar os morcegos, recolhendo os restos das frutas deixadas, de dia, para os pássaros.  Tento justificar-me: já me bastam os rasantes inócuos na varanda à noite. Não posso dar-lhes pouso.

Houve quem me tenha colocado sob suspeita de uso de alguma substância. Afinal, quem se alegraria só por admirar a rotina desses insetos ignorados? Estive à beira de boatos que poderiam afetar minha reputação de careta.

Casca de cigarra – Foto: Ana Lúcia Gosling

Um amigo me devolveu o chão.  Observava, há cerca de 10 anos, a desova dos insetos na parte externa da sua casa e me deu, até, umas dicas. Trocamos figurinhas publicamente em rede social e éramos dois encantados com essa manifestação da natureza. Se me internassem como doida, eu teria a companhia dele.

Os filhotes foram embora, todos, no décimo primeiro dia. O burburinho se encerrou.

Meu amigo, experto no assunto, disse que marias-fedidas procriam perto do lugar onde nasceram. Se outra aparecer para colocar ovos na varanda, não terei como saber se estarei romantizando, de novo, ao imaginá-la uma das ninfas nascidas no último mês.

Mas, sabe, às vezes, não somos nós e, sim, a própria natureza, a enfeitar a realidade, com seus ciclos, seus desabrochares e renasceres. Com a chuva, disfarçando o barro da paisagem. Com o sol, ressaltando o verde da mata. Com limpidez, revelando vida sob as águas.

Na dúvida, não dispensem um colarzinho de pérolas verdes ou qualquer outro fenômeno natural que apareça no seu caminho. Mesmo o mais ingênuo sempre contém uma revelação. Mesmo o mais inusitado atrai boas histórias.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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