Você sabe Gramática. Mas você não sabe que sabe.

Real Gabinete Português de Leitura (Rio de Janeiro – RJ) . Foto: Raphael Gomide

O desafio na oficina literária, numa semana dessas, era escrever sem usar adjetivos. Se já é difícil abrir mão dos adjetivos descritivos ou que expressam emoções, imagine para quem alegou não ter certeza se saberia reconhecer todos os adjetivos. E não minimize essa angústia: todos que fomos à escola usamos e sabemos o que são adjetivos e substantivos mas, no uso mais afiado da língua, dúvidas surgem sempre.
“Eu não sei gramática”, houve quem dissesse. Outra colega partiu em defesa da língua: “Não devia ser assim, considerando-se que Português é a única matéria que todo mundo chega na escola já sabendo”. Mas ela entende, e eu também, que há alguma coisa muito errada no ensino da língua quando se cria essa resistência.
Para quem não aprendeu a gostar de gramática, trago uma revelação: você sabe gramática; você só não sabe que sabe.

Na escola, aprendemos que gramática é um conjunto de regras daquilo que, por convenção, constitui a norma culta da língua. Possui força de lei: o que foge à regra, é considerado erro gramatical. Trata-se da Gramática Normativa: as regras que deveriam ser seguidas.
Mas existem várias gramáticas. Há a Gramática Histórica (investigativa da origem e evolução da língua), a Gramática Comparativa (que compara uma língua com outras de mesma origem; no nosso caso, a língua portuguesa e as de origem latina) e a Gramática Descritiva.

Real Gabinete Português de Leitura – Foto de Raphael Gomide

A Gramática Descritiva se debruça sobre as regras que são seguidas. Parte-se da observação da língua como ela é, na forma em que é praticada pelo falante. Não há “erros”. Erro, dentro dessa perspectiva, teria que ser algo não existente na língua, algo genuinamente “agramatical”, fugindo tanto às regras convencionadas pela norma culta como as praticadas na vida real. Explico melhor com os exemplos abaixo, de fácil entendimento.

1. “As meninas estão bonitas” é uma frase totalmente encaixada nas regras da gramática normativa: artigo (“as”) definindo gênero e número; substantivo (“meninas”) concordando em gênero e número com o artigo; verbo (“estão”) na terceira pessoa do plural; adjetivo (“bonitas”) concordando em gênero e número com substantivo.

2. “As menina tá bonita” é uma frase em desacordo com as regras da gramática normativa. No entanto, você já ouviu pessoas falando assim na vida real. Você consegue entender o que se diz, não é verdade? Muitas vezes, cotidianamente, fere-se a norma culta gramatical mas as expressões continuam facilmente reconhecidas por nós. A comunicação está garantida: sabemos que é feminino e plural porque o artigo (“as”) nos aponta a direção, mesmo que o substantivo esteja no singular, o verbo não concorde e o adjetivo também não. A gramática descritiva reconhece seu uso como válido: é a vida como ela é; a fala como ela se faz. E detalhe: não só pessoas incultas atropelam as normas. Todos nós, de um jeito ou de outro, praticando a língua, fazemos construções imperfeitas à luz da gramática normativa.

3. “As menino tão bonito”. Bem, esse seria um exemplo do que chamei de uma estrutura “agramatical”. Fere não só à gramática normativa quanto à descritiva. Qualquer falante da língua, por mais inculto que seja, não construiria uma frase assim. Como ouvintes, também não entenderíamos o que se quer dizer: falamos de meninas ou de meninos?
Perceba que há, portanto, um outro tipo de gramática: uma gramática internalizada.
Todo mundo aprende a falar, mesmo que não aprenda a escrever. Nesse processo de imersão e aprendizado da língua, várias regras gramaticais são internalizadas, mesmo que nunca se vá à escola. Os padrões estruturais mais relevantes são compreendidos num nível subconsciente e garantem ao falante que seja possível comunicar-se. Aquele que lê bastante, aguça ainda mais essa percepção, escrevendo bem, mesmo sem decorar regras de ortografia, além de enriquecer seus parâmetros normativos inconscientemente.
Qualquer falante da língua portuguesa, alfabetizado ou não, sabe, por exemplo, que os artigos determinam gênero e número. Por isso, jamais dirá “as menino”, como no exemplo 3 acima. Também não dirá “menina bonito” por saber, também implicitamente, que os adjetivos concordam em gênero e número com os substantivos.
E essa é a mágica desperdiçada, muitas vezes, em sala de aula. Fazer a ponte do conhecimento nato que todos temos, independente de idade ou grupo social, para um pulo maior ou mais específico: o uso da língua dentro dos padrões cultos. Focando não só na preservação da própria língua, na melhoria da comunicação social e, como resultado, num maior equilíbrio nas relações de poder (sim, o bom uso da língua é poder), bem como no objetivo mais básico: passar na prova, no Enem ou em concursos em geral.

Foto de Taylor Wilcox – Site Unsplash. com

 

“Estudar gramática é chato porque acaba existindo muita exceção às regras”, há quem diga. Sim, a língua é um organismo vivo. A gramática tenta desacelerar o ritmo da mudança mas a mudança é inevitável. Com o tempo, vão-se abrindo exceções, até admitindo-se como certo o que, antes, não existia, porque o uso está tão consagrado que o gramático não pode mais fechar os olhos a isso. E aí mora muita beleza também: na língua-acontecimento.

Conheci alguém que se referia a determinado menino como “o pestinho”, ao invés de “o pestinha”. Desconhecia a regra gramatical que diz que “pestinha” é substantivo de dois gêneros e, portanto, o “a” no fim da palavra não é definidor de gênero feminino. Mas, paradoxalmente, foi o seu conhecimento linguístico que elaborou essa construção. Estava internalizado que “o” é desinência do gênero masculino e “a” do feminino, assim como em, por exemplo, “o fruto x a fruta”, e a pessoa apenas seguiu o padrão. “Pestinho” não existe no dicionário, é um erro gramatical. Mas podemos dizer que é fiel a uma estrutura gramatical da nossa língua, não?

Real Gabinete Português de Leitura – Foto de Raphael Gomide

Pego o gancho nessa questão para dar um conselho, antes de rotularem-se os erros. Sempre que uma palavra for estruturalmente perfeita, mesmo que soe como errada por seu uso não ser comum, desconfie antes de criticar. Olhe no dicionário! Por exemplo, consagramos o uso da palavra “apicultor” mas existe “abelheiro”, significando a mesma coisa: criador ou tratador de abelhas.

Talvez gramática não devesse ser tratada como lei máxima num momento da vida, a adolescência, em que tudo que se quer é romper-se com o que há. Mais necessário é entender o contexto, o porquê da existência das regras, o quanto o bom uso de uma ou outra torna seu discurso mais eficaz e, portanto, sua comunicação mais efetiva. Como professor, o segredo está em saber ser ponte nessa jornada de apuração do conhecimento. Fazer despertar o interesse, mostrar a aplicabilidade na vida real do que se vê na sala de aula, sem desperdiçar a bagagem natural dos alunos. Não porque eles precisam ser aprovados em concursos ou passar de ano mas porque a língua é ferramenta poderosa, inclusive, para subverter-se a ordem existente.

São algumas ideias. Certo mesmo é que não podemos matar um interesse que é nato: todos precisam expressar-se na vida e a língua é o canal.

Não devemos limitar o uso de um poema, como o de Oswald de Andrade, abaixo, ao estudo de próclises ou de pronomes atónos. Percebe como ele nos fala da vida e de tudo que falamos hoje aqui?

PRONOMINAIS

(Oswald de Andrade)

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Em tempo: Num dos meus primeiros textos neste portal, critiquei a abordagem, por vezes enfadonha, da produção de textos nas escolas, passando, também, pelo ensino da língua portuguesa. http://artecult.com/e-asas-meu-texto-onde-ponho/.
Recentemente, citei a importância da gramática como ferramenta de preservação da língua e, de forma mais abrangente, de uma identidade de grupo, nação até. Está em http://artecult.com/etimologia-sociedade-desconhecimento-e-preconceito/.

ANA LÚCIA GOSLING

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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