Por tudo que um dia já existiu

 

Vovô apareceu em um  Ford Corcel 1972 Branco. Vinha devagarinho, dobrando a esquina da Borja Reis com a Eulina Ribeiro. Carro sem placa, Como isso é possível? Ele roubou o carro?, nada. Comprado mesmo. Novinho. Cheirinho de bonito. A gente pulava tudo de alegria.

Ele parou em frente ao portão. Uma buzinada convocava todos os netos. Suas filhas, que agora eram só mães, judiavam reclamações sem precedentes. Vovô era toda a lei naquele Corcel. Nos entupimos ali dentro. O carro tinha rádio. Um samba já embalava o cavalinho de carro, tão lustroso, Vovô saiu devagar. Uma manobra, carro embicado. Fomos passear.

Ele virou na Borja Reis e fomos seguindo  como se tudo fosse lento. Motos e carros zuniam pelos lados. Tinham placas, poucas pessoas e com olhos arregalados. Meus primos e eu também estávamos, mas nossas bocas escancaradas diminuíam os espaços dos olhos. Ríamos. Cantávamos. Vovô flutuava.

Bar e Restaurante Amarelinho de Cascadura

Lembro que viramos na Adolfo Bergamini e seguimos até seu final. Vovô aponta para a estação do Engenho de Dentro, explica algum treco que pouco escuto e segue reto. Ele fala de Piedade e disse que íamos jogar bola em Quintino. Em um campinho por ali paramos. Tinha um carinha que jogava muito: Arthurzico era como o chamavam. Não consegui mesmo jogar com ele. Era o bicho. Corria como um galo. Vovô vendo os netos tomando aquele olé todo, saiu gritando que era para voltar pro carro.

Paramos num restaurante chamado Amarelinho, em Cascadura. Tomamos Guaraná, comemos um bolinho. Voltamos para casa.

Passeio hoje com meu filho em um Ford Ka. Ele ama o carro. Saio de uma Barra da Tijuca tomada por um trânsito caótico e destemperado. Meu menino tem um jogo no celular que o faz parecer dirigir o Fordinho. Vamos à Ilha, visitar o Vovô, enterrado no cemitério do Cacuia, e meu pai, que desde sua aposentadoria, monta um Maverick. Desço a saída 2 da Linha Amarela na esperança de ver um Corcelzinho. Mas a Borja Reis hoje é outra. A Dias da Cruz também. Um Chevette incomoda o trânsito na Hermengarda. Chego no Lins rápido. Meu filho disse que desbloqueou o Mustang no jogo. O Kazinho se contorce de alegria.

– Pai, o carro é muito lindo.

Na Rodoviária sigo pela Linha Vermelha. Barreira do Vasco. Estádio do São Cristóvão. Favela da Maré, tudo se amontoa de carioquices. O Rio sempre será Rio nesse monte de tijolo, concreto no alto, trânsito afogado e mangue lodoso. Aqui tem tudo. Consigo três pacotes de Biscoito Globo. Entro na Ilha com sorriso e farelo. Meu filho sempre se maravilha com o caça na entrada da Vila Militar. Passo devagar. É bom, pois ele tira um pouco os olhos de dentro do celular. Dura pouco. Mas a emoção que se repete dessas vezes em que aqui viemos faz meu filho pedir pra gente vir na Ilha. Amo a Ilha. Mesmo sendo a Ilha.

Passo em frente ao Ilha Plaza, as Kombis de sempre com o público de sempre me mostra como a Ilha parou no tempo. As reformas do César Maia fizeram desse lugar um ponto nos anos noventa. Essa nostalgia constante me acalma. Entendo papai ter vindo morar aqui depois que se separou de mamãe.

– Pai, será que vovô terminou aquele carro dele?

Nem respondo. Sigo pela Eutíquio Soledade e entro no Tauá. A casa de papai fica numa esquina perto da Cedae, também conhecida por Merdelândia. Aqui ele passou a infância, me disse uma vez. Morou na Praia da Rosa, depois numa vila aqui perto. Nunca consegui ir lá, mas dava pra ver a casa que meus bisavós fizeram há muito tempo.  Portão aberto, peças jogadas na calçada, um banco sem forração, papai trabalha.

Meu filho deixa o celular no banco do Ka, nesse descuido contemporâneo pela segurança. Eles se abraçam e aproveito cada instante dessa cena eterna. Papai sempre foi um bom pai, mesmo depois da separação, quando passamos a nos ver menos. Depois que fiquei adulto e tive um filho, ele ia lá em casa, brincava com Arthurzinho e se divertiam. Até hoje são muito grudados. Papai conta a história de amor que teve com os Escorts e com os Focus, Só desse foram 3, que maravilha de carro, o quanto ele gostava de ir pra Macaé dirigindo o Fordão.

Arthurzinho tira a blusa e pega uma chave de fenda. Senta no chão com o Velho e começam a aparafusar o parachoque de metal. Tiro umas fotos. Mando pra mãe dele. Depois disso pegam umas caixas, até ajudo, eram os faróis, Esses aqui são de LED, com direcionador, Mas, Pai, você não ia manter a originalidade do carro?, Melhor não, vou colocar uma central multidímia moderna, que espelha tela do celular e vou jogar Video Game com Arthurzinho.

Almoçamos ali perto, no Corredor Esportivo. Vínhamos muito aqui fugindo de mamãe. Ela não podia saber que Papai me ensinava a dirigir nessa rua. O Velho nunca gostou de morar fora da Ilha, levou muito tempo pra voltar pra cá. Ele dirigiu o Kazinho, reclamou de seu tamanho pequeno, mas que era certo pra minha família. Papai reclama, Ó, se sua mulher te aporrinhar, vem pra cá, tem um quarto pra você e pra sua irmã aqui. Eu rio dizendo que Maria não me incomoda e que ela é muito tranquila. Pergunto se ele quer ir no cemitério comigo, Não, meu filho, fui lá essa semana falar com seu avô. Se quiser, deixa Arthurzinho comigo e vai. Sei que tu sente a maior falta dele.

Cheguei no cemitério. Um Corcelzinho branco detonado estava na esquina, à venda. O cara queria mil pratas. Documentação no nome dele. Cinco anos pra fazer. Preferi não arriscar. No túmulo do velho, o mesmo cachorrinho deitado. Na coleira, o nome Edsel. Converso com Vovô. Escuto ele dizendo que tem vida indo e vida vindo. Me arrepio. Vovô não era de falar muito. Quando voltei pra casa, meu pai e Arthruzinho viam aquele filme do Clint Eastwood: Gran Torino, em que ele atua como um ex-funcionário da Ford. Filme maravilhoso.

Uma semana depois meu pai morreu. Teve um AVC. Minha irmã, que é médica, estava com ele lá na casa da Ilha. Mesmo assim, ele não resistiu. Mamãe apareceu no enterro. Chorou horrores. Todos sabíamos. O Velho era casca grossa demais.

Um mês depois foi a vez de minha irmã, que se descobriu grávida. Morávamos perto, em um condomínio na Barra. Menino. Ela deu o nome de nosso Pai: Fernando. Tinha vida indo e vida vindo. Levei mais cinco anos para terminar o Maverick, tudo com ajuda de Arthurzinho, que hoje já é menino grande, entrando na faculdade. Foi ele que ficou com o carro do Coroa.

Hoje ando em um Ford Territory. Maria cuida de um Pet Shop e dirige um Ford Transit. Sofia, minha irmã, se mudou pra Ilha, depois que se separou. Ela tem um Volks. Nunca consegui ter um Volks depois que tive um Golzinho. Não gostei mesmo.

***

Ford Maverick 302 V8

Se tem algo de que gosto é dirigir esse carro que meu avô me deixou: Maverick 302 V8, de um laranja lindo. Carro vistoso. Diferente desses carros de hoje, que são de plástico, elétricos, pasteurizados, desencorajadores, carros sem sabor. A Ford sabia fazer carro. Bem melhores do que o da Chevrolet, que nem mais existem. Vejo um Opala ou outro por aí, mas na mão de velhos que nem mais sabem dirigir. Andar pelo Fundão com esse carro dá outro gosto, outra vida. Um amigo tem um Fiestinha rebaixado, antigão, também maravilhoso, carro bom de rua e de curva. Carro que sabe ser carro. Entrei pra UFRJ tem um ano mais ou menos. Engenharia Mecânica. Meu professor de Mecânica II disse que ia um dia dar aula com meu carro, só pra mostrar como eram os motores do século passado. Mas meu carro não tá todo original. Tem muita coisa que meu avô quis colocar, como injeção eletrônica num bloco v8. Passo em frente ao CCMN e depois na Faculdade de Letras. Tem uma garota lá que entende tudo de carro, ficamos um tempão uma vez falando do Escort xr3 e do RS, de um Fusca do pai dela e de uma Belina da avó. Ela adorava andar na mala da Belina Ghia, toda encarpetada na cor marrom e com buzina na alavanca esquerda. Linda. Primeiro carro com ar condicionado em que ela andou quando era criança, dizia. O pai dela gostava mesmo de ir em encontro de Fusca. Só Fusca. O pai deixou uma Brasília pra ela ir pra UFRJ, mas ela gostava mais do carro da mãe, um Ford Ka Street redondinho, MK1,5, com motor 1.6. Carrinho bom de estrada, mas não batia meu Vecão laranja v8. Uma vez saímos daqui do Fundão, ela com o Kazinho dela, eu no meu Vecão e fomos até a Lapa. Sabia dirigir bem. Carrinho dela colado no chão. Na reta, aquela bolinha prata ficava pra trás. Em muitas curvas, ela chegava. Paramos nos Arcos da Lapa.

Ela morava com os pais na Ribeira, na Ilha do Governador. Ela me achava riquinho por ter um carro daquele e morar na Barra. Papai quis conhecê-la, Filho, por que não a chama pra passar um fim de semana em Araruama com a gente?, ela foi. Papai quis dirigir meu carro, Sente falta de seu avô?, Demais, pai. Ele tá sempre aqui.

À viagem toda escutamos Dream Theater e Iron Maiden. Vovô só curtia metal pesado e progressivo. Essa casa de Araruama também era dele. Mantivemos tudo: as miniaturas de Ford, os livros clássicos de filosofia e literatura, as louças marcadas pelo tempo, o piso de ardósia vermelha e sua coleção de jalecos e blusas de banda. Lá tinha também a cama de meu pai e da minha tia. Nos fundos da casa havia um montão de peça de carro velho e umas garrafas de uísque vazias. Vinho também. Mas havia mais de uísque. Ana chegou com um irmão. Mais velho. Os pais dela não puderam vir, havia um encontro do Clube do Fusca na Praça do Cocotá que o pai não perderia mesmo. Passamos a falar de carro e o irmão dela falou de uma Pampa com a qual ele trabalhou como entregador de uma Petshop na Ilha em seu primeiro emprego. Velha. Caindo aos pedaços. Toda enferrujada. Mas aguentava tranco. O dono da Petshop não a vendia ou comprava outro carro. Havia até um esquema de delivery por motos, umas CG da Honda. Mas era pra entregas pequenas e rápidas. As que demandavam mais ele usava a Pampa. Um amigo desse senhor usava até uma Peugeot 504. Bruta. Caçamba enorme. Mas nada batia a Pampa, dizia.

Expliquei porque a casa era velha daquele jeito. Meus pais não queriam modernizá-la. Estar ali era uma viagem no tempo. Nada de internet ou TV. Nem computador. O sinal do celular era péssimo. Vovô tinha ficado um tempão sem vir nela, depois que a cachorra morreu. Ele também estava naquela de fazer o Maverick, meio que deixou a casa de lado. Pagava uma caseira e só. Meu pai e tia Sofia racharam o custo de uma obra de infiltração e mais nada. Deixaram tudo do jeito que era.

– Eu gostei. Sério. Parece um museu.

E parecia mesmo. Móveis antigos. Sofás sem bluetooth e som integrado. Televisão grossa, pequena, de tubo, sem projetor integrado e com apenas um antena digital, pegando apenas canais abertos, um rádio para CD – uma velharia impressionante e funcionando – e uns discos enormes, que meu pai chama de LP. Ana se surpreende com todo esse passadismo exacerbado. Me pergunta como meu avô conseguia viver aqui sem internet e sem modernidade, Vovô era um cara bruto, não viu o carro que ele deixou? E mesmo assim não terminou, fomos eu e meu pai que terminamos. Na verdade, mais eu do que ele, pois Papai não é de pegar no pesado.

– Por isso você faz Engenharia Mecânica?

É. Influência de Vovô. E olha que ele nem era tão bom nesses negócios de mecânica. Ele que gostava de ler e fazer. Quando se separou de minha avó e se aposentou, comprou esse carro. Ele era fã de Ford, como todo mundo é. Tentou fazer o sonho de moleque dele. Acabou não conseguindo. E eu me culpo até hoje por isso.

Ana me beija. Acabamos nos casando. Temos dois filhos. Tia Sofia se casou de novo. Papai se foi, exaustão no trabalho. Mamãe resolveu fechar a Petshop. Tudo lembrava meu pai. Ela vendeu o apartamento. Comprou um F150 Raptor e hoje mora em um Sítio em Rio Bonito. Desce uma vez por mês pra ficar aqui com a gente. Eu e Ana moramos no Recreio, mas pensamos em sair do Rio. Os pais dela morreram numa viagem. O Fusca capotou depois que um dos pneus estourou. Foi uma tragédia. O irmão dela é um Bon Vivant que mora em Ipanema com um cara que conheceu na faculdade. Ama os sobrinhos, sempre envia presentes. Eles se divertem com o jeito carismático e feliz com a qual encara a vida. Ri de tudo. Anda num DS9 importado. Mandou trazer da França.

Pego o Vecão para mais um passeio. Mandei dar uma boa reformada nele. Troquei algumas peças antigas. Desço a Avenida das Américas toda e sigo para São Conrado. Ana precisava também desse passeio. Nossas crianças já criadas não nos dão mais as preocupações de antes. Sentem falta da avó, morta há uns dois anos. Passeamos devagar, como se não houvesse amanhã. E não há. Tudo já se foi. Paramos no Arpoador. Estaciono o meu carro perto de um Corcel Branco, um Focus Sedan Preto, uma Pampa, uma Belina Ghia. Logo depois chega uma Ranger. Desce dela um homem de chapéu. Ele me cumprimenta levantando levemente a aba. O Sol laranja inunda o Maverick. Na rua, o som grosso do motor de um Mustang comove nossa vida. Eu e Ana, de mãos dadas, sentimos o Sol nos tomar. Há aqui todo o Rio que amamos.

MÁRCIO CALIXTO

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Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.

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