Com Ana Lúcia Gosling
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Foto: Minh, em Unsplash
Quando minha mãe adoeceu pela primeira vez, eu tinha 10 anos. Não entendia bem todas as implicações do processo pelo qual ela passava mas lembro de investir em minha positividade para alegrá-la. Em algum momento, ela me disse: “na sua idade, nos achamos imortais”. Apesar de criança, eu sabia da nossa mortalidade. Bancando a madura, a corrigi: “Como não? Todo mundo sabe que somos mortais”. Sempre suave, ela riu: “não, filha, você ainda não sabe”.
Mamãe viveria muitas décadas após. Venceria a doença, manteria sua força e sua suavidade diante dos desafios impostos pela vida. Foram muitos.
Claro que ela sabia de sua mortalidade. Mas falava de quando a verdade deixa o campo da lógica e torna-se um sentimento profundo e real. Para ela, aconteceu diante de sua fragilidade física. Doenças graves nos reduzem a espaços menores, limitam horizontes, por um tempo ou para sempre.
A lembrança dessa constatação de mamãe me volta, de tempos em tempos. Sem a melancolia de quem se arriscava à beira de abismos. Mas, no dia a dia rotineiro, com os olhos modificados pelos eventos da madura idade.
O peso da orfandade, a falta dos entes amados, nós no topo da árvore genealógica. Posicionados à mesa onde, há pouco, sentava-se minha ancestralidade. É bonito: remete ao vínculo terreno, à perpetuação de valores e tradições. Mas é triste, também; pesam as ausências.
O mundo sendo a maravilha da renovação nos conduz a um local totalmente diferente daquele em que fomos criados, com referências, limitações e cores alterados pelo presente. Por melhor adaptados que estejamos, há quem nos olhe como relíquias. Mesmo reconhecendo nossa capacidade de entender e a importância da nossa participação, põem à prova a nossa atualidade.
Há o aborrecimento das limitações físicas. A memória ou o metabolismo ou a elasticidade da pele desafiam até os mais saudáveis. Aos 10, você não conta quantos brigadeiros ingere. Aos 15, você não os vê na bandeja, concentrada em chamar a atenção do menino na festa. Aos 20 e poucos, há tantos ciclos importantes se iniciando (estudo, carreira, formação de família), mal há tempo para alimentação. Na maturidade, deixam rastros em nosso sangue, acúmulos em nosso corpo, e aprendemos a mastigar com os talheres apoiados na mesa, saboreando as garfadas e nos interessando o tempero e o paladar, até das saladas.
É quando percebemos precisarmos de mais tempo para atenção aos sabores da vida. Tardes longas para almoços, conversas inúteis e sensação de pertencimento. Fins de semana calmos para compensar correria dos dias úteis. Precisamos, logo! Antes que uma dificuldade grave nos lembre da nossa mortalidade, como aconteceu com mamãe, ou as pessoas que amamos nos abandonem ao luto.
Melhor começarmos hoje, agora, antes de virarmos esta página.
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com César Manzolillo