Sabe a cena de “O casamento do meu melhor amigo” em que Julia Roberts incentiva a moça desafinada a cantar em público, pra constranger a concorrente? O tiro sai pela culatra: o noivo se encanta e o bar inteiro vibra com a apresentação? Comigo, foi diferente.
Nunca tinha cantado em público mas decidi que “ser desafinada” era um rótulo imposto. O cara quis subir ao palco comigo, eu queria ficar com ele, tramei: “canto baixo, finjo que não sei uma parte da letra”. Fui. Ele tomou pela mão uma mulher flertiva, madura, recém-separada. Mas pôs sob holofotes uma menina de cinco anos. Enrubescida e trêmula. A voz desalinhada desde a primeira estrofe. Calei nas outras partes do dueto, tentando diminuir os danos. Ele fingiu compreensão, me deu carona mas não uma segunda chance.
Quando criança, adorava dançar e cantar. A Broadway não me descobriu porque, filha de coronel, se levantasse olhos, pernas ou voz, o olhar de “comporte-se” me vestiria na hora. Longe das vistas, ensaiava canções e ligava a tevê de madrugada para ver musicais de Gene Kelly.
Meu repertório eram as românticas do Roberto e do Chico. Bethânia e Gal. Desejava ser uma das meninas da Blitz e deixava o pai horrorizado com as letras.
Frígida, Betty frígida, rígida
Eu não consigo relaxar
Quando mamãe se cansava da cantoria, dizia: “se, ao menos, você fosse afinada…” Os irmãos riam. Eu murchava. Era unânime: eu cantava mal. Cresci lamentando ser gralha e não sabiá. Conformada.
Mas a maternidade montou armadilha pra mim. Colocar filho pra dormir é guerra e, na guerra, perde-se a dignidade. Entoei canções de ninar e clássicos da MPB, atravessando noites intermináveis. Pasmem: o neném adorava. Quando aprendeu a falar, se eu parasse, tirava a chupeta e pedia “eu cai, eu cai”:
Serenou, eu caio, eu caio
Serenou, deixai cair
Serenou na madrugada
Não deixou meu bem dormir
Regenerei a auto estima. Até compus duas ou três musiquinhas pro bebê.
Se, na infância dos filhos, somos mitos, na sua adolescência, somos julgados. Quando o menino resolveu aprender a tocar piano, voltei a pensar em fazer aula de canto. “Você é muito desafinada, mãe”. Minha popularidade sofreu um golpe mas reagi com coragem: “vou aprender, ué!”
Não aprendi. Deixei pra lá. Restringi as performances a carro e chuveiro. Mas provocava o filho, por diversão: “quando fizer ‘canto’, vou querer você ao piano”. Ele rechaçava as chances irreais. E ríamos.
Cantamos juntos nas caronas das manhãs. Há um vídeo nosso na plateia do show do A-Ha, com as vozes misturadas a outras centenas. Se eu falar, hoje, ao filho adulto em tocar pra eu cantar, sorrirá, sabendo ser brincadeira. Talvez me devolva: “se, ao menos, você fosse afinada”.
Não ligo. A frase soa engraçada. Vira anedota em conversa ou crônica em oficina. Talvez eu comece por aí, se precisar justificar nova recusa de cantar com outro pretendente. Quem sabe, assim, garanto um segundo encontro?
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com César Manzolillo
Novamente, um texto preciso, precioso, humorado. Ler Ana Lúcia Gosling, às quartas, já é mais que hábito obrigatório: é prazeroso. E sua crônica, com certeza, nunca desafina. Obrigado.
Obrigada, Tanussi! Feliz demais de ter um leitor especial como você. Bjs.