Às quartas – O avesso da metáfora

Foto: Ben White, em Unsplash

 

– Galinha! – José gritava na porta do prédio, alterado pela bebida. – Baleia! Tá se achando gostosa? Atrás de mim, só tem filé.

O peito despedaçado. Só pensava em envergonhar a mulher.

Maria se encondia atrás das cortinas do quarto. Morta de vergonha. Rezava para o homem ir embora logo. Naquela noite, tinha compromisso.

– É o fim do mundo! – disse uma vizinha, esperando o elevador.

– O fundo do poço! – respondeu Severino – Foi chutado pela mulher, virou a cabeça.

O elevador subir vazio. A vizinha se interessou pelo assunto.

– Traição?, perguntou.

– Nada! Ele é carta fora do baralho há meses. Maltratava a pobre, chegava mamado. Dançou.

O porteiro sabia detalhes da vida do casal. Interfonou umas vezes, pedindo silêncio nas discussões. Precisou, até, chamar a polícia numa noite em que José, bêbado, esmurrava a porta, tentando entrar em casa.

– Bem feito! Acostumado à vida de rei! Casa, mulher, comida quentinha. – a vizinha dizia, como se soubesse.

– Dona Maria não merece. Uma santa!

– Pedaço de mau caminho. Com aqueles olhos? Deve ter fila na porta. Duvido que dê ponto sem nó!

– Isso é a senhora que está dizendo.

Severino encerrou a conversa, antes de emitir algum parecer que o implicasse. Sempre sobra para o lado mais fraco. Não podia arriscar a caixinha de Natal. Dona Maria era uma santa. Ponto. Foi até o homem para tentar acabar com o rebuliço.

José ajoelhou na calçada, chorando rios. Dor e álcool latejando na mente. Maria permanecia com as cortinas fechadas e o coração blindado.

– Essa mulher tem coração de pedra! – José gritava.

– Faz isso, não, “Seu” Zé. Geral olhando.

Severino convenceu José a sentar-se na portaria. Faltava pouco para o porteiro da noite chegar e reclamar de o problema ter ficado sem solução antes da troca do turno.

– Essa mulher tem sangue de barata! – José se doía.

– Assim o senhor não derrete o coração dela. Ela é uma “lady”.

– Com gelo nas veias.

– Lembra, no início do namoro, dos bilhetes que deixava na portaria com flor pra ela? Mulher gosta de palavra doce.

– Gastei meu Português. “Você é minha jóia, minha luz”. Vaca!

Maria chegou quente na portaria, comprando o barraco:

– Judas! Traíra! Filé, não sei. Mas piranha, atrás de você, não falta! Pede a elas pra lavarem suas cuecas. Já nadei em outra direção.

– Amo você. Não fala assim, gatinha.

– Baleia, você disse. Não sou peixe raso, não. Domino oceanos!

Maria saiu, vestida para matar: roupa colada ao corpo, decote generoso e boca pintada de vermelho. José tentou seguí-la, trôpego.

– Aonde você vai, mulher?

– Ciscar em outro terreiro. Galinha, né?

Severino assistia a tudo entristecido. Tanta rima, tanta metáfora, tanta palavra jogada fora.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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