Voltando para casa, ouvi Erasmo Carlos no rádio, cantando “Minha Superstar”, música do álbum “Mulher”. Eu tinha 10/11 anos quando Erasmo lançou o disco, com uma capa ousada na época (uma foto dele sendo amamentado por sua esposa) e um repertório que homenageava a mulher.
O álbum, até hoje, é o meu favorito do cantor. Talvez por estar associado a memórias afetivas: as tardes após a escola, ouvindo música e dançando com as janelas fechadas, por timidez. Certo é que, em seu trabalho, o artista desconstruía a imagem de fragilidade da mulher e enfatizava sua força. Parece pouco mas não é – principalmente, há 4 décadas.
Desde cedo, toda menina aprende: ser mulher é um desafio. Falei disso quando escrevi “Ser mulher é superar o medo” . A força da mulher vem como instinto. Uma necessidade. Após constantes superações.
Por coincidência, no decorrer da semana, fui a três espetáculos com personagens femininas no centro da narrativa: “A mulher descoberta”, “Elas brilham” e “Marilyn – por trás do espelho”. Mulheres cujo brilho se tentou abafar; cuja força assustou e, paradoxalmente, seduziu o mundo.
Em “A Mulher Descoberta”, navegamos nas reflexões e constatações de uma mulher morta, antes presa a um casamento de 39 anos, desgastado pela rotina e pelos costumes. A narrativa de Walter Macedo Filho é provocante, finamente tecida sobre o desconfortável (morte, desamor, indiferença, solidão) e mergulha nas brechas abertas do relacionamento. A personagem, fortemente interpretada pela atriz Adriana Karla Rodrigues, percorre o caminho das desilusões femininas, numa relação idealizada, depois frustrada e, por fim, solitária. O texto propõe amplas reflexões. E o protagonismo feminino acrescenta uma camada de desamparo: a da mulher nas relações, socialmente convencionais, asfixiantes da sua potência. (Sobre “A Mulher Descoberta” )
Em “Elas Brilham”, celebramos. O tom “broadway” do espetáculo, contudo, não mascara os desafios e as conquistas pioneiras que as personagens em cena vivenciaram em suas vidas reais. Mulheres reais, de destaque ao longo das últimas décadas. Muitas em tempos severamente antagônicos, em que sequer gozavam de mesmos direitos civis e, ainda, a questão racial somava-se à questão do gênero. O roteiro de Marcos Nauer faz um trançado interessante entre as personagens e aquelas que as interpretam, criando um momento em que as atrizes dividem suas próprias histórias pessoais. A plateia veste de aplausos personagens e intérpretes, todas reais, cheias de força, propósito, dores e ternura. Suas jornadas viram uma celebração ao talento e à potência feminina. (Sobre “Elas Brilham”)
Em “Marilyn”, o tom é mais melancólio. Nossa empatia repousa sobre a vida da atriz, percorrendo um longo caminho entre o sonho e a desilusão; entre querer ganhar o mundo e nunca sentir-se pertencente a ele. O carinho com que o texto de Daniel Dias da Silva aborda sua trajetória dramática humaniza o mito, aconchega a mulher e dialoga com o feminino em nós da plateia. Marilyn foi símbolo sexual quando o sexo era um tabu ainda maior. Mas sua sensualidade jamais se sobrepôs à esperança de ser vista, entendida e amada. A atuação de Anna Sant’Ana dá profundidade às questões da personagem, como o abandono, a solidão, a invisibilidade.
Hoje, talvez, uma celebração à potência feminina seja mais natural. No palco. No campo das ideias. Mas as questões levantadas pela dramaturgia, e instigantes para a plateia, ainda passam por abusos, mal trato, pelos cerceios e pela falta de fé na capacidade feminina. Se ainda precisamos falar disso, é porque continuamos vítimas desses contextos.
Bem, chegando em casa, armei meu tabladinho de madeira e pus “Minha Superstar” para tocar. Sapateei sozinha na sala, com as janelas abertas. Fiz até um vídeo curto, enviado para as amigas do sapateado. Uma vergonha, de tão amador. Uma alegria, por tanta liberdade. E nasceu este texto. Já é um começo. Já é mais uma brecha nesse cansativo processo de libertação.
ANA LÚCIA GOSLING