Às quartas – Mariana e Mariah

Foto da autora.

Riam no corredor, voltando da reunião de condomínio. Vizinhas de porta, nomes parecidos, quanta confusão custavam aos porteiros. As cartas e contas trocadas na caixa do correio pareciam uma espécie de travessura. Destrocá-las era pretexto para oferecem-se chá, café ou um biscoito amanteigado que a filha de uma ou o filho de outra trouxera de Petrópolis.

Foi fácil tornarem-se amigas.

Viúvas e apaixonadas por plantas, debruçavam-se, cada uma em sua varanda, dissertando sobre o pulgão na samambaia ou reclamando do sol da tarde a ressecar as folhagens. Se faltava luz à noite, espantavam a escuridão também ali, vigiando a rua apagada e comentando as impressões da novela.

O filho de Mariah nunca entendeu por que não assistiam juntas à das oito, tamanho era o compromisso de não perderem qualquer capítulo. “Eu, hein?! A essa hora, já estou de peignoir”, a mãe dizia, adepta de deitar-se cedo. Marina costumava cercá-lo enquanto ele esperava o elevador, com esperanças de fazê-lo encantar-se com sua filha solteira.

Da mesma forma, a filha de Marina evitava a armadilha de chegar à porta do apartamento de Mariah. O cafezinho oferecido virava mesa de lanche em instantes. Seguia-se o discurso sobre a necessidade de um companheiro de boa família.

As amigas compraram juntas vasos de hibiscos para florirem em suas varandas. Mariah preferiu os amarelos. Marina, os vermelhos. As flores chamavam de primavera todas as estações do ano e alternavam seu brotar, dando assunto às amigas. O chá da tarde era bebido na casa de quem tinha botões abertos. Assim, podiam falar sobre como, à tarde, as flores se arregaçavam ainda mais do que na manhã em que brotaram.

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Na casa de Marina, a bebida era servida nas xícaras chinesas, herdadas da avó. Na de Mariah, a louça era inglesa. Comiam bolo. Vestiam-se de forma discreta, usavam lavanda e paravam a vida no fim da tarde. Os pássaros se mostravam inquietos para que abandonassem o posto, deixando-lhes as migalhas para bicarem.

Jornal, janta, novela. Telefonema de filho ou filha. Noite curta. Nascer do sol. Café passado no coador de pano. Rádio ligado nas primeiras notícias. Batidas na porta. O porteiro entregando o jornal impresso. Os dias aconteciam de novo e eram mansas as manhãs.

Até o dia em que Mariah não atendeu à porta. O porteiro insistiu, atraindo Marina de volta ao corredor. Ligaram para o filho. O rapaz trouxe a chave reserva que, enquanto rodava na fechadura, permitia à Marina rezar por um final feliz.

Hoje, as flores amarelas vivem na mesma varanda das vermelhas. Marina toma o chá sozinha. Conta às plantas seu medo: não fecha os olhos à noite, por não ter certeza de que se abrirão pela manhã. É vencida pelo sono e, ao despertar, sente alívio. Mas, viçosos, os hibiscos lhe mostram que a vida é alternância de cor e de estação. Ela aceita, afinal, só lhe cabe aceitar.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

One comment

  • Marina – Ana minha querida amiga, que suavidade a leveza da vida! Só as lembranças persistem!

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