Às quartas – Madrugada adentro

Foto: Dominik Hofbauer, em Unsplash

Faço descobertas de madrugada. Achando que os pássaros vinham de manhã cobrar-me as frutas, descobri que cantam freneticamente às 4 horas. Sem pretensão de que queiram chamar minha atenção, penalizo-me por esguelarem-se à toa, por horas, até que se inicie a manhã.

Conheci o silêncio da madrugada quando meu filho era bebê. Eu o amamentava, depois de ele acordar-me, chorando, e sempre havia, ao fundo, um pássaro cuja espécie não identifico. Em espaços de tempo quase iguais, ele piava longamente. Não era um lamento, era vibrante. Mas as notas se espalhavam madrugada adentro.

Hoje, quando as noites são insones, ele ainda me lembra: a escuridão é passageira, o silêncio não é solidão e o dia amanhecerá.

Mas este pássaro não se mistura à algazarra que mencionei. Às 4h, são muitos, uma agitação, que, em nada, combina com minha vontade de continuar dormindo. O silêncio da rua faz suas vozes transportarem-se vividamente até o quarto: parecem estar à beira da janela e estão nas árvores.

Entre os sons da noite, há o da caminhada do rapaz maltrapilho, a remexer o lixo. Sei que ele está na rua quando escuto o barulho das latas reviradas. Uma ou outra vai ao chão. Curiosa, um dia, fui até a janela e foi aí que o vi pela primeira vez. Ele as selecionava com cuidado e, quando uma caía no chão, se não a guardasse no enorme plástico preto que porta, ele a punha de volta na lixeira. Depois, seguia, pela rua, invisível e discreto.

Sentada na varanda, se me falta a movimentação do dia, distingo os ruídos. A mais leve brisa é percebida como vento, se sacode os sinos pendurados. Um cão ladra solitário no quintal da esquina, sabe-se lá o que terá interrompido seu sono. Espero pelo pássaro conhecido. O homem, só na véspera da coleta do lixo, em seu próprio cronograma de trabalho.

Se há lua cheia, penso em magia, talvez romance. Ainda que nada ocorra, a espera preenche o vazio deixado pela esperança. Contra as luzes do bairro, desenha-se o contorno da montanha e, mesmo no escuro, posso adivinhar-lhe em detalhes. A rua vira céu com seus pontos iluminados.

O céu negro não se torna azul com facilidade. Tons laranjas se desenham por volta das 4h, forçando-se contra a barreira da negritude. Às 5h, o céu, às vezes, é meio rosado. Quase sempre, a lua espera pelo sol. E, quando ele está no alto, o azul domina. Sendo outono, em tom especial, quiçá pintado à mão pelo Arquiteto.

Só sei disso porque me tira o sono a incerteza. Porque não enterro a preocupação. Quando a fina camada de equilíbrio desmorona, abro os olhos na madrugada. Reclamo dos olhos pesados, do cansaço no corpo, tendo contemplado o abismo da noite e o subjugado ao raiar do dia. Em dias tranquilos, esquecerei de tudo.

A essa beleza, só acessam os sentinelas.

 

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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