
Com Ana Lúcia Gosling

Foto da Autora
(Para Marcelo, irmão e padrinho, que plantou a muda e, hoje, tem seu lar à sombra da árvore)
Se o velho jasmim-manga continuasse a crescer, como eu, seria menos angustiante nos aproximarmos. Criança, deixei para trás a árvore cujos galhos as pernas curtas escalavam na direção das flores brancas com que enfeitava minhas tranças.
Justifico a distância da rua até o portão da casa antiga: ao envelhecerem, os paralelepípedos se retraem, como se encolhem avós, pais, em conchas de afetos. Aceito as casas modificadas por diferenciarem-se, também, meus tons de maquiagem em cada estação; sem pintura, é comum notarem-se os vincos e as rugas disfarçadas, riscadas nos rostos como nas fachadas.
Mas o jasmim-manga me impede continuar em negação. Abre-se em novos galhos, mas, em comparação a minha altura, está menor. Ostenta a passagem do tempo vivido por nós, eu e ele, separadamente. Suas raízes empurram meus pés. O tronco, agora, contornável pelos mesmos braços insuficientes à menina para cercá-lo. O vão onde sentava-me, pequena, para esticar as mãos até os galhos, hoje, à altura do meu peito.
Sei, de repente, sei: cresci, irremediavelmente.

Foto da Autora
A árvore não me acompanhou. Se vivesse, apenas, na minha imaginação, sonharia, como antes, voltar a subí-la, com o coração acelerado pela travessura, mirando o mosaico de plumérias e folhas, branco e verde, desenhado contra o céu. Teria um desafio a vencer, colheria recompensas, relevaria os arranhões. Mas a realidade me tolhe: o objeto do meu amor se modificou para mim. Tenho facilidade de alcançá-lo, meus dedos o tocam com intimidade, e não me tornei potente.
Perdi lastro.
Em volta, as coisas se revelam. O entorno se apequena. Os muros fissurados me doem mais do que feridas. A distância entre o início da rua e o portão da casa sinalizam o encurtamento do caminho.
Cresci. De repente. Envelheci, mesmo sendo menina.
Se o jasmim-manga tivesse crescido comigo, seria imenso para as novas crianças. Eu ainda o mediria de baixo. Suas flores se estampariam contra o azul, cobrindo as estrelas. A garotada pensaria haver comunhão entre universo e jardim; o firmamento, riscado em zigue-zague, o leito de um rio, e as nuvens, suas pedras. Poderia virar o mundo de ponta-cabeça, dominando a arte de saltar entre os vãos do chão e os do infinito.
Eu, sob o céu, não pensaria nas fronteiras da vida. Saberia ser, tudo, vereda sem fim. Trilha estendida ao invés de afunilada. Não temeria andar no ar por não temer molhar os pés ou pisar a grama. E, por onde marchasse, haveria perfume. O mesmo deixado, na infância, por suas flores em meus cabelos.


Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo














Que linda crônica poética…para a gente se emocionar e refletir sobre o tempo e nossa vida…
Fico feliz que tenha gostado, amigo. Obrigada pela leitura!
Ana, estou a chorar com as recordações de nossa infância! Lembro de tudo ao detalhe, a mente me transporta ao passado como máquina do tempo. Olho as casas e lembro das histórias, das brincadeiras como se o tempo não tivesse passado. Um domingo sentada à mesa a olhar para o jasmim-manga com amigos de uma vida traz uma paz profunda no coração!
Infância boa a nossa! Quantas voltas de bicicleta em torno do jasmim! rs Obrigada, querida amiga!
Envelheci, mesmo sendo menina / como se encolhem avós, pais, em concha de afetos!
Trechos lindos, condicionados a um processo de percepção particular e lírica. Onde se encontra essa árvore tão cheia de saudades?
Oi Márcio, obrigada! A árvore está plantada em Vila Isabel, na vila da minha infância, em frente à casa do meu irmão. Personagem real.