Às quartas – Caetaneando o que há de bom

Foto: Globo – Reginaldo Teixeira

Na semana em que Jô partiu, o mundo perdeu uma fração de gentileza, mas Caetano a repôs com sua poesia. No fim da semana em que Milton se despedia dos cariocas, lamentei não ter um ingresso para estar em sua platéia, mas me sentei, em casa, na platéia de Caetano. Até bati palmas, do meu sofá, emocionada, quando terminaram algumas canções.

Caetano estava num palco esvaziado de cenários e de músicos. Na companhia dos três filhos e da irmã. Um número 80, sua nova idade, suspenso ao fundo. O 8 brincava com a forma do infinito – eterno é o que ele sempre será. A família fez música junta. Compartilhou pérolas sem arrogância. Era tudo delicadeza. Voz mansa. Violão. Piano tímido. Percursão discreta e marcante. Poesia morna na voz de Bethânia. Estávamos embalados num colo. Tudo era hipnose. Encantamento. A música entrando nos ouvidos, nos enlevando até os aplausos romperem o fio.

Foto: Divulgação – Instituto Gilberto Gil

Já assisti a Caetano ao vivo algumas vezes. Já o vi com Gil, numa apresentação comovente, há poucos anos, num dos melhores espetáculos da minha vida. Mas o show dos 80 anos foi único. Mar de afetividade. Homenagem a outros compositores amigos que também oitentaram/ão neste ano: Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Milton Nascimento. Amor cúmplice do nosso. Tudo foi doçura. Gratidão dele aos amores de sua vida. O pai entre os filhos. Os irmãos dançando juntos ao final. A plateia de amigos.

Quantos compositores contemporâneos numa época de valor cultural imenso!, eu pensava. Além dos citados por ele, lembro o gigante Chico Buarque, também Roberto e Erasmo Carlos, Rita Lee, Jorge Benjor. Raul Seixas e Tim Maia, que partiram precocemente. Outros tantos. Cada um, do seu jeito, somando contribuições imensas. Criatividade e afeto. Poesia e sentimento. Verdade e fantasia. Deixando heranças.

As polarizações se desfizeram nas ondas de elegância trazidas por Caetano. A revolução se fez com palavra recebida com admiração. A sensação de ruína cultural desapareceu diante da lembrança da riqueza que temos nos artistas que são nossa maior referência. A esperança brotou num domingo à noite. Pudemos sonhar. Sabemos que essa beleza, esse talento, essa visão de mundo se eternizarão em nós. Sempre espreitarão o momento de voar como bola de sabão, frágil e colorida contra a luz do sol, arrancando sorrisos e uma esperança infantil da alma.

Se há uma explicação para, sei lá, a incoerência do mundo ou o sentido da vida, a quem importava naquela hora? Transcendemos naquele momento, através da música.

Ave, Caetano!

Salve a arte brasileira!

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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