Às quartas – Bebê Rena e nossa fragilidade

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Assisti a “Bebê Rena”, na Netflix. A série é autobiográfica, tendo Richard Gadd, protagonista e criador da série, sido, de fato, vítima de uma stalker. Sua história pessoal de assédio é narrada, com algumas adaptações dramatúrgicas.

Apesar da temática, em nada a narrativa se parece com uma trama policial ou de suspense. No primeiro episódio, ao perceber a malícia do comportamento de Marta, interpretada por Jessica Gunning, sente-se medo. No entanto, o tom humano permeando o desenrolar da história, nos traz um outro sentimento: empatia pela miséria daquelas vidas. Tanto vítima quanto assediadora tinham, por diferentes motivos, uma longa história de carências, baixa autoestima e traumas profundos.

Por isso, a série foge de um maniqueísmo e os limites entre a vilania e o vitimismo, por vezes, ruem. A vítima, numa simbiose doentia com sua algoz, alimenta-se da relação tóxica que, de alguma forma, adiciona significado a sua existência. A perseguidora é agressiva e amorosa; ora perdoa-se sua doença mental, ora teme-se sua agressividade. A obsessão se faz presente nos dois polos dessa relação.

Sugerir uma dose de responsabilidade à vítima é caminho perigoso de seguir-se, alerta-me um amigo, incomodado com a estratégia, condenável e costumeira no mundo real. Ele está certo no seu desconforto. Mas, justamente por eu ver no personagem o espelhamento da vida do seu intérprete e de suas emoções, comprei com naturalidade a sua constante expiação. O abuso sexual (através de e-mails com intenso conteúdo sexual, piadas dos colegas de trabalho ou estupros sofridos) traz um homem no papel da vítima, com diferentes pressões sociais em relação a consentimento e vitimização – o que, inclusive, o empurra na direção do abuso, em algumas situações.

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Num monólogo no palco, Gadd encena o colapso mental de seu personagem, soterrado por pressões e medos em um mundo hostil, onde firmar-se estava sendo tarefa árdua para quem já perdera a fé em si. Na vida real, não houve colapso – o monólogo fora inserido intencionalmente numa apresentação teatral do ator. A cena tocante deu ao ator o seu momento mais marcante na série.

No fim, meus pensamentos não eram sobre Bebê Rena e, sim, sobre a fragilidade humana. Mesmo não sendo claro o quanto há de real nas cenas dos diferentes abusos, a angústia e o desamparo emocional do protagonista me provocavam. O que faria um abusado voltar, tantas vezes, aos braços dos seus abusadores? Por que imaginaria ser nova a chance num novo encontro, em que se repetiam padrões anteriores? Por que precisaríamos dos outros para validarem nossas qualidades, nossas potências, nossas existências?

Não é apenas uma história sobre a stalker de Richard Gadd. É, também, sobre o quanto podemos ser codependentes do que nos maltrata, ancorados em nossas feridas, durante um processo de autoafirmação. Que a consciência desse fato nos liberte, sem que sejamos devorados pela culpa que não temos.

Gostei muito da série. Mas o amigo está correto na ponderação que fez. Há vezes que reconhecer-se vítima é tomar as rédeas da sua história.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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