Às Quartas – Amália

Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Yaopey Yong, em Unsplash

 

Amália usa uma blusa vaporosa, bermuda de linho e sapatos fechados, para não arriscar-se a molhar os dedos na água do peixe. Encaixa as bolsas reutilizáveis nos braços, dobrando os cotovelos na frente do corpo. Usa um primer para uniformizar manchinhas, um batom cor “de boca” e um rímel transparente, fazendo parecer acaso os cílios levantados naquela manhã. Reprova, em silêncio, a vizinha dos fundos, por descer no elevador de chinelos e cabelos molhados, puxando um carrinho de rodinhas. Para Amália, a feira é um evento.

Começa pelo pastel com caldo de cana, bem cedo, quando o óleo ainda é transparente. Leu no jornal sobre os malefícios do óleo requentado à saúde e não quis aborrecer o pasteleiro. Cada um que cuide de si.

Admira as garças que frequentam a feira nas primeiras horas da manhã. Quando os peixeiros espalham os peixes sobre as bancadas para limpá-los, elas vêm, atraídas. Empoleiram-se no alto da lona, aguardando jogarem fora as sobras. Amália inveja serem sabedoras do calendário das peixarias. Aparecem, nos dias certos, nas feiras da região. Deseja a liberdade das aves. Se pudesse, também percorreria o circuito de feiras para estender o círculo de amizades.

Por ora, limita-se aos corredores do seu quarteirão. O biscoiteiro é a melhor risada da feira. Chama-a de “meu amor”,  dando-lhe uma prova de goiabinha ou de castanha. Vive os minutos mais alegres da sua semana ali. Compra biscoitos proibidos, em razão da alta da glicose, dando-os aos porteiros.

Traz legumes, verduras e frutas, deixando sempre a banana por último. Há um senhor cuja banca possui os vários tipos da fruta: prata, pera, d’água, d’ouro. Confidenciou-lhe o hábito de comprar bananas d’ouro, a preferida do falecido marido, nos meses em que ficou acamado. Olha a penca como se fosse um buquê de flores, com a visão velada pela saudade. Vez ou outra, o homem lhe presenteia com uma dúzia, na hora da xepa.

Antes de voltar, pega suco e água de coco frescos na barraca da esquina; mel e parmesão ralado na hora, do outro lado da rua; panos de cozinha em frente ao seu prédio e, às vezes, almoça a quentinha da Banca da Marli, dica dos feirantes. Peixe frito, feijão, arroz, batatas fritas, com tempero de dona de casa.

Depois da abertura do hortifruti na praça central, a conversa tem sido a baixa frequência na feira. Os barraqueiros reclamam que, a cada mês, faturam menos. Alguns deixaram de vir nos dias que antecedem feriados, por não compensar.

Da janela, ela assiste ao desmanche das barracas e à lavagem da rua, com tristeza. Os dias demorarão a passar na rua quase sem movimento.

Assumiu uma missão: liga para o disque-denúncia toda semana. Faz acusações pequenas, criando problemas para o hortifruti: inseticida nos alimentos, validade vencida nas prateleiras. Conta mentiras aos porteiros, que as disseminam aos vizinhos: baratas entre os legumes, carne podre na geladeira. Mente por uma boa causa. Sem feira à porta, o que será de toda a gente que nela trabalha? Quem a chamará de meu amor?

 

ANA LUCIA GOSLING

@analugosling

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

4 comments

  • Amei a Amália!!!!! Ela faz cada minuto da feira se tornar um evento!! Quanta alegria de viver e humanidade. Vamos acessar as Amália que temos dentro de nós!!!!

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    • Que bom que gostou dela rsrs Inspirada na feira da porta de casa rs Obrigada pela leitura!

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  • Ana, me sinto uma quase Amália! Adoro ir a feira desde os tempos de infância, todas às 4ª feiras na porta de casa. Agora o evento é aos domingos! Uma alegria genuína! Não tem como se entristecer com tanta delicadeza dos feirantes com as freguesas, como eles gostam de falar.

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