AC Literatura Convida – Pablo Kaschner

 

Hoje, no projeto AC Literatura Convida, nosso colunista César Manzolillo (@cesarmanzolillo) nos traz  o conto “A casa da beira do rio“, do autor Pablo Kaschner (@umpabloamais).

 

A casa da beira do rio

 

Seguisse seu coração, pegava uma maleta e se mandava dali, daquela casa à beira do rio, de Cachoeiro do Itapemirim, do Espírito Santo, do Brasil, daquilo tudo, enfim, que nunca lhe dissera respeito. Viajaria para a Alemanha, para as Ilhas Maurício, para o Turcomenistão, preciso fosse. Ela desconfiava, e era quase uma certeza o que lhe vinha do peito, de que, sim, era preciso.

 

– Vai, Hannelore! Que mais há de se fazer quando a merda já está feita?

 

A súplica bem-humorada, vinda de alguém que tanto prezava, soou como alento após aquela pequena tragédia, e ela chegou a esboçar mesmo um sorriso, a despeito do mundo que acabava de desabar em suas costas. A despeito da culpa que lhe fora impingida quando aquela carta, endereçada a um amor secreto, retornou ao endereço do remetente e foi aberta pelo esposo. Aquela carta de amor, ainda que um impossível e, talvez por isso, cada dia maior. Amor de juventude que, por força do destino ou de famílias conservadoras, lhe fora amputado do peito. Um amor que já a fizera se jogar em um rio gelado, pois melhor aquilo que ficar longe do calor de seu amado.

Naquele momento, em que seu segredo mais íntimo e pungente havia sido escancarado, em que não lhe restava nada além da roupa do corpo e o amor dos filhos, deu-se o momento decisivo.

 

– Vai, Hannelore! Pega sua maleta e vai! – dizia-lhe uma voz que vinha não se sabe de onde, talvez de dentro – Os filhos já estão todos criados. Agora é você quem deve criar asas e ir em busca dos seus sonhos. The answer, my friend, is blowin’ in the wind. Vá!

 

Não foi. Talvez tenha pesado a responsabilidade de zelar pelos seis filhos; talvez o zelo de não ser responsabilizada pela destruição de uma família aparentemente feliz. Não foi. Em vez disso, enclausurou-se mais e mais em uma felicidade contida, à base de alegrias esparsas e um ou outro tarja preta. Preferiu a dignidade de uma reputação incólume, ou quase isso, a viver sua verdade; o pragmatismo concreto ao romantismo utópico. Não foi. E o que antes era sutileza, agora se tornara uma frágil figura; a delicadeza dos mosaicos de vidro que fazia nas poucas horas vagas dera lugar à brutalidade de uma depressão sem fim. Apagara-se.

Assim ficou, por muito tempo. Nem o casamento dos filhos, nem o nascimento do primeiro neto, e do segundo, e do terceiro, nem sequer a morte do marido alteraria seu estado letárgico. Anulara-se.

Vivendo à base de drágeas, passava as comprimidas horas na casa do rio, pensando em como teria sido a Hannelore que decidiu viver. Aquela que pegou a maleta e saiu porta afora. “Tempo tudo vence, tempo tudo vence”, repetia para si, como mantra.

Quando lhe chegou ao ouvido a notícia de que Johann, o amor de sua adolescência, também enviuvara, uma melhora significativa foi percebida em seu quadro clínico. Os médicos se surpreenderam com o súbito restabelecimento, fruto, naturalmente, “das novas medicações”, alegravam-se convictos doutores. Hannelore decidira, após tantos anos, escrever nova carta endereçada ao amor que ficara na Alemanha. Lamentaria, respeitosamente, a viuvez, mas sabia que ainda havia tempo para que fossem amantes. Ainda havia tempo. Tempo tudo vence.

Quando, enfim, veio a resposta com aquela caligrafia que tanto mexia com seus sentimentos, Hannelore encheu-se de vida. Ninguém, senão Johann, seria capaz daquilo. Como, então, explicar que ele havia escrito, de próprio punho, que se casara novamente? Que lógica havia naquilo?

 

Os médicos atribuíram a piora de Hannelore à resistência criada por seu organismo à nova droga, fazendo com que o fármaco se tornasse inócuo. Não havia remédio. A partir de então, ela passaria os dias esperando o momento em que a morte lhe levasse a agonia do peito.

As horas restantes na casa do rio seriam passadas ao lado de duas acompanhantes. Cada vez mais distante de si, do leito de sua cama ela mirava, pela janela, para a cheia do rio, e pensava no caminho que ficara ao largo, na Hannelore que poderia ter sido. Como devia ser incrível ser comandante da própria vida… Tempo tudo vence.

Olhando ao longe, um leito d’água salobra lhe correu a face. Com algum esforço, sacou do bolso o lenço, enxugou o molhado e, entre uma e outra gota, disse, com o fio de voz que lhe restava, como se no passadiço de uma embarcação à deriva estivesse:

 

– É tão bom viajar de navio…

 

Convencida de que a resposta soprava no vento, despediu-se dos que acenavam à beira do cais, e, com um sorriso terno, pegou sua maleta, como quem sabe que navegar é preciso, mais que o próprio viver. O navio já estava de partida.

 

p/ Hannelore Kaschner

 

 

 

Pablo Kaschner

Minibiografia do autor

Atuo como roteirista, pesquisador e jornalista. Formei-me em Rádio e TV pela ECO/UFRJ. Fiz pós-graduação em Artes da Escrita na Universidade Nova de Lisboa e mestrado em Memória Social na UNIRIO. Tenho experiência profissional em diversas áreas da comunicação social. Por mais de dois anos, participei da equipe fixa de roteiristas da Conspiração Filmes, onde trabalhei em programas como Amor Verissimo, Vai que Cola, Surtadas na Yoga e Bela Cozinha. Atualmente me dedico a desenvolver projetos de roteiro, dramaturgia e literatura.

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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