Há algum tempo, escrevi para esta coluna sobre os contos dos Irmãos Grimm (http://artecult.com/contos-de-grimm/), sobre como, no original, as histórias podem apresentar-se diferentes das versões popularizadas pelo cinema.
Em evidência agora, está “Branca de Neve“, o remake que os estúdios Disney pretendem fazer do clássico desenho dos anos 30. Preocupados com questões ligadas à representatividade e à diversidade, a personagem principal seria interpretada por uma atriz latina e os anões, substituídos por seres mágicos.
O filme não está pronto, não há como criticar as saídas encontradas, saber se, dramaturgicamente, funcionaram ou não. Mas sempre ponho os pés atrás quando o assunto é mexer em contos de fada, em que repousam várias situações arquetípicas, representando estágios emocionais e de desenvolvimento humano. Normalmente, quem mexe na história ignora e atropela esse fato.
Vale dizer que o próprio Walt Disney fez alterações significativas quando produziu “Branca de Neve e os Sete Anões”. A começar pelo título, elevando os anões a co-protagonistas da trama quando, originalmente, o conto se chama, apenas, “Branca de Neve”.
Como sabemos, os contos de fada não eram escritos para crianças. Muitos são, inclusive, violentos. “Branca de Neve”, por exemplo, possui uma cena de canibalismo: a Madrasta devora o fígado e o pulmão que pensa ser de Branca de Neve, após recebê-los do Caçador. Os órgãos comidos variam nas versões existentes: o fígado e o coração ou só coração. Mas a essência se mantém: adquirir a beleza, o encanto, as dádivas da princesa ao devorar seus órgãos. Vale dizer que os Irmãos Grimm registraram histórias populares, transmitidas oralmente há gerações e, por isso, há variações. Em algumas versões, por exemplo, a antagonista de Branca de Neve não era a Madrasta mas sua própria mãe, o que tornaria a cena ainda mais brutal.
Outro momento violento é a morte da Rainha (madrasta). Convidada ao casamento do príncipe, sem saber que Branca de Neve seria a noiva, por imaginá-la morta, ela é castigada na frente de todos, sendo obrigada a dançar com sapatos de ferro em brasa até morrer. Diferente do desenho, em que sua morte é acidental, uma espécie de punição divina para a maldade que acabara de fazer, sua morte é lenta e cruel, premeditada pelos noivos.
Se a brancura de Branca de Neve está sendo tratada atualmente como uma questão racial, sua origem está ligada totalmente ao simbólico. Nas diferentes versões, os pais sempre desejaram uma filha branca como a neve, corada como o sangue e de cabelos negros como o ébano ou as asas de um corvo. Em algumas, esse desejo nasceu da visão de gotas de sangue caídas sobre o chão coberto de neve ou sobre o leite.
O branco e o vermelho representariam, segundo Bruno Bettelheim em “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, a inocência sexual e o desejo sexual. A pureza e o espiritual em conflito com as emoções. Esse é o percurso subliminar que faz a personagem protagonista que, ao começar a desenvolver-se e revelar-se sexualmente atraente, vira objeto do ódio narcisista da Madrasta; que, abandonada na floresta pelo Caçador, precisa crescer e aprender a sobreviver sozinha; que, tutelada pelos anões, amadurece mas sucumbe às tentações que a tornam sexualmente mais atraente, até que, ao morder a maçã vermelha morre (simbolicamente, matando a criança e dando lugar à mulher, que se casaria no fim da história).
Isso se percebe muito claramente no conto porque, ao contrário do desenho de Disney, percorremos etapas até chegar à morte por envenenamento da maçã. São três as tentativas da Madrasta em aniquilar Branca de Neve. Primeiro, ela se disfarça e vende-lhe um cinto de fitas, mostrando ao leitor que já se passara um tempo desde que a menina tinha ido morar com os anões e crescera, possuindo o desejo “adolescente” de parecer bonita. Depois, a Madrasta lhe oferece um pente enfeitiçado e a promessa de um lindo penteado. Nas duas primeiras vezes, Branca de Neve cai nas armadilhas, embora tenha sido alertada dos perigos pelos anões, e sempre é salva porque eles acabam descobrindo como libertá-la do feitiço: afrouxando o cinto ou tirando o pente dos seus cabelos. Na terceira vez, a Madrasta oferece a maçã vermelha. Imaginando que a moça estaria mais esperta, divide a fruta ao meio e propõe-se a comer a outra metade para mostrar que não está envenenada. De novo, branco e vermelho estão em contraponto. A metade da Rainha é a clara, não possui veneno. A da princesa, a vermelha, enfeitiçada. Para Bettelheim, a morte de Branca de Neve neste momento em que morde a maçã simboliza o fim da sua inocência.
Não há beijo de amor na princesa adormecida. Isso também foi um “toque Disney”. O Príncipe se apaixona pela princesa e a leva, em seu caixão de cristal, para o castelo. No caminho, tropeça numa pedra, a maçã sai da garganta de Branca de Neve e ela acorda. Eles se casam no fim, sem os ares românticos que o cinema americano lhes emprestou.
Outra discussão sobre o remake envolve o papel dos anões. Nos contos de fada, os anões assumem diferentes papéis. Por vezes, mágicos; outras vezes, são retratados como maldosos. Na mitologia, entretanto, os anões são associados à sabedoria e à mineração. Não é à toa que, em Branca de Neve, eles são mineradores e assumem a função de facilitadores do processo de amadurecimento da personagem principal. Isso está ligado à sabedoria que lhes é atribuída. Eles a acolhem, são sensíveis a sua tragédia pessoal, mas exigem dela responsabilidade. Diferente do desenho, em que Branca de Neve chega na casa deles e põe tudo em ordem com a ajuda dos animais da floresta, são os anões que a enquadram: “Quer ficar aqui tomando conta da nossa casa, cuidando da nossa comida e da nossa roupa? Se aceitar, nada faltará nunca a você”. São homens sérios e trabalhadores – em sete, representando os dias da semana (numa alusão tanto à semana de trabalho quanto à passagem do tempo, creio eu).
No conto, não há diferença entre os anões. Eles não têm nomes próprios nem características que os diferenciem. Walt Disney escolheu dar a cada um deles características bem emocionais, provavelmente para ajudar o público infantil a identificá-las, além de trazer graça e leveza à narrativa. Diz-nos Bettelheim:
“Os anões simbolizam uma forma de existência imatura e pré-individual que Branca de Neve deve transcender. Por isso, o fato de dar nome próprio e uma personalidade individual a cada um – como fez Walt Disney no seu filme – quando no conto de fadas todos são idênticos, interfere seriamente na compreensão inconsciente desse simbolismo”.
Ao lado dos anões, Branca de Neve supera dificuldades e cresce/amadurece. No cinema, ao infantilizá-los e colocá-los sob sua proteção maternal, esse sentido se perde.
Branca como a neve, corada como o sangue, cercada por anões sábios e trabalhadores, sem beijo de amor que a desperte da morte, mas com príncipe apaixonado e vingança contra a madrasta, esta é a história original. Uma longa representação do amadurecimento feminino (desde a fase edípica da criança até a mulher amadurecida), passando pelas questões do narcisismo, da sexualidade (subliminarmente) e do bem e do mal. Até que ponto afeta mexer no castelo de cartas de suas representações psicológicas ou na memória afetiva dos leitores de Grimm ou dos fãs da Disney é a questão. Para respondê-la, é preciso saber o que o texto diz em sua essência e entender que adaptá-lo é um desafio maior do que parece à primeira vista.