AINDA ESTOU AQUI
(E VAMOS SORRIR E CELEBRAR A VIDA)
Luís Turiba*
O que a gente sente ao sair de uma sala de cinema, após assistir a uma obra instigante e repleta de flashes do passado, flashes de luz e de sombras?
E se o filme for daqueles que ressuscitam um passado e nos envolvem no encanto e na magia que só o bom cinema é capaz de proporcionar, esse misto de sentimentos internos maravilhosos e iluminados?
Estou falando do “Ainda estou aqui”, filme de Walter Salles Jr, baseado na história da família do então ex-deputado Rubens Paiva, que fora cassado pelo Ato Institucional N⁰ 5, foi perseguido, preso e morto pela ditadura em meados dos anos 70. Se o foco principal da película é familiar, o enredo fica por conta de Eunice Paiva, esposa do ex-deputado, advogada, defensora de causas indígenas e mãe de cinco filhos. Uma mulher brasileira.
Na telona Eunice é estupendamente bem representada por Fernanda Torres, que se faz uma mulher contida, de comportamento discreto e desconfiado, mas corajosa e decidida a “encarar a barra” de procurar o paradeiro do seu marido, sequestrado nas masmorras da ditadura. O corpo de Rubens Paiva, um ex-deputado do PTB, jamais foi devolvido à família.
Mas o filme em questão é histórico, humano e cumpre a função de denunciar um governo policialesco, mesmo que traga cenas terríveis e assustadoras, daquelas que doem na alma e deixam a consciência do pensamento rodando de não mais querer parar. É uma obra que vai se apresentando por camadas, mas que todos sabemos onde o final vai dar.
O filme vem sendo apontado pela crítica e pelo público, que lotou os sete mil lugares reservados às suas primeiras apresentações. Uma jóia que honra a arte e a magia do cinema nacional, na melhor linha do Cinema Novo. Afinal, o cinema traduz a alma de um povo.
“Ainda estou aqui” é um filme que, mesmo que não soubéssemos – e realmente não sabíamos, éramos inocentes úteis neste caso – causa a impressão de que estávamos com saudades daquela sua luz lusco-fusco, da sua elegância nos cortes, ao abordar temas tão complexos, por intermédio de cenas difusas e misteriosas, algumas feitas simulando linguagem de Super 8.
Quem viveu os anos de chumbo da década de 70, saberá justamente do que se trata. A barra já estava realmente pesada, mas Eunice monta suas estratégias de resistência e não permite que seus filhos deixem de sorrir, cantar e celebrar a vida em clima de camaradagem juvenil.
– Sim, nós vamos sorrir. Sorriam crianças; ordena Eunice quando o fotógrafo da revista pede para eles ficarem sérios ou tristes, já após o desaparecimento de Rubens.
A repressão e a crueldade em cima da família, cria um certo constrangimento no público. A tensão envolve os que estão no cinema.
Para entender melhor esses sentimentos “ocultos” que vão sendo revelados pela brilhante direção de Walter Salles, poderíamos até buscar saídas no identitário do espectador anônimo. A depender da sua idade, das suas experiências de vida, de onde você estava quando o pau quebrou naquela década do terror, os anos 70. Quem passou por aquelas experiências saberá se reconhecer neste período nefasto, por uma sombria herança de medos, desconfianças e incertezas.
Como estou no meu pós-70, e sou um sobrevivente de 68, senti certo estranhamento ao deixar aquela sala de cinema, num shopping central de Niterói, depois de assistir com a minha namorada, por mais de duas horas, cenas que trouxeram pesadelos natimortos do passado.
O roteiro construído avança com a prisão de Eunice e da sua filha Eliana, a mais velha, hoje com 71 anos. Ambas são levadas para um submundo militar que não é claramente identificado. Há quem diga que elas foram levadas para o Cenimar, serviço de repressão da Marinha que funcionou na Ilha das Flores, Baía de Guanabara. Outros falam da sede do Doi-Codi instalado no Quartel da PE nas imediações da Praça Sãens Pena, entre a Tijuca e o Grajaú.
O certo é que esta “camada” do filme é a mais tensa. Os interrogatórios em cima de Eunice se intensificam. Durantes dias, ela se vê obrigada a olhar álbuns e mais álbuns de fotografias de amigos da família e as perguntas de sempre:
– Quem é essa pessoa? E esse homem? Ele esteve cinco vezes na sua casa. Pode confessar, será mais fácil…
Não há violência física, propriamente dita, em cima das duas presas, mas o terror e a tortura psicológica chegam a níveis insuportáveis. Eunice sempre se nega a reconhecer quaisquer pessoas, mas ao mesmo tempo, ela nunca deixa de indagar e clamar juntos aos seus algozes e agentes da repressão, sobre o paradeiro do marido:
– Onde está o Rubens?
Ela não se cansa de perguntar. A filha Eliana vive dias de pavor no quartel, não sabe sequer porque está presa. Ambas não conseguem dormir por dias e noites.
A esta altura, os rumores sobre a execução de Rubens dominam todas as conversas da família e dos grupos de amigos. Tudo acontece com muito mistério, muito silêncio gritante. Até que surge a última camada da dramática história e há uma ordem (ninguém sabe de quem) para entregar o Atestado de Óbito do ex-deputado à Eunice.
O tempo segue seu roteiro e a última cena do histórico filme, que, tudo indica, reabre o caminho para um provável reencontro com o Oscar, em 2025, recuperando assim aquele elo perdido que Glauber Rocha chamou de ”Cynema Brazileyro”: surge na tela surpreendente, num close no rosto, a atriz e acadêmica Fernanda Montenegro. Sua participação também traz uma carga de simbolismo e memória. Ela não se move, mas entra em cena como a Eunice, já nos seus quase 90 anos, cabelo branquinho, feições cansadas, mas, sem dizer palavra, sem entender ou querer entender aquela nova reunião familiar.
Há um certo impacto entre os cinéfilos presentes na sala de cinema. O que fazer? Cabisbaixos, reflexivos, cada pessoa segue seu caminho, silenciosamente, com memórias fervilhando à mente. Nada a fazer, a não ser repensar tudo. Sempre.
(Nota do Editor: não deixe de conferir também a playlist no Spotify da trilha sonora do filme Ainda Estou Aqui)
LUIS TURIBA
*Luís Turiba é jornalista aposentado, poeta com 3 livros editados pela 7 Letras do RJ, e outros 8 livros no campo da poesia independente e/ou marginal.É editor da revista anual de invenções poéticas Bric a Brac, criada em Brasília, em 1985. A Bric a Brac 8, última edição, saiu em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda pode ser encontrada nas melhores livrarias de Ramos.
Obrigado, Turiba, por sua emocionante e emocionada crítica sobre esse já histórico, em todos os sentidos, filme. Que esses tempos sombrios não se repitam. Jamais. Apesar de eles ainda estarem aqui. Grande texto, amigo. Parabéns!
Sabendo agora tudo que você também passou naquele tempo, esse texto ganha outra dimensão e imagino a dureza de você ter que relembrar tudo aquilo através das cenas da prisão de Eunice e sua filha… O tipo de memória indelével que todos os guerreiros pela justiça invariavelmente ganham. Por isso é tão importante contar, mostrar para as gerações seguintes.
Obrigado aos dois grandes parceiros. Ao editor Raphael Gomide que trata sempre com carinho, atenção e sempre algo a mais que acrescente e melhora a edição.
E ao poeta Tanussi Cardoso, que nos oferece a melhor coluna de poesia, arte e literatura, com dicas incríveis e imperdíveis para seis leitores montarem suas agendas das próximas semanas.
Obrigado a ambos pelas referências.
Existem filmes para serem vistos na tela imensurável e na ambientação de uma sala de cinema e suas liturgias: a reserva, a fila, a chegada, a espera, a expectativa.
E Ainda Estou Aqui atende a outros rituais: da entrega, da memória, do sabor, da crueza indigesta, da memória concreta, da História. Sim, da História.
Foi uma honra e um privilégio sentir/assistir/persistir nesse viés impuro/obscuro/soturno desse filme com o amado poeta e colunista Turiba, onde choramos, nos emocionamos, resistimos em eloquentes silêncios, através da sétima arte.
Belo artigo, poeta, significativo e delicado.
Um brinde a Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva e aos seus prismas e desdobramentos. Evoé.
Ditadura nunca mais!