Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Art Lasovsky, em Unsplash
– Ah, funcionária pública? Não esperava… pra ser escritora precisa ser criativa, né?
Incomoda a afirmativa entrelaçada ao preconceito. A tolerância, uma das minhas qualidades, anda gasta no mundo de verdades absolutas a partir de achismos. Bem humorada, prossigo.
– Funcionária pública e bem acompanhada. Na verdade, dos maiores, pra mim: Machado, Drummond, Bandeira, Guimarães.
Abrevio os nomes pra parecer que somos, eu e os grandes, unha e carne na linha encarnatória das missões literárias e públicas. Espero não estar cometendo heresia, pra não arriscar ser enviada a outra morada espiritual. Não imagino meu céu sem eles.
Machado de Assis foi funcionário do Diário Oficial, trabalhou na Secretaria de Agricultura, além de ser Diretor-Geral da Contabilidade do Ministério da Indústria. Carlos Drummond de Andrade foi chefe de gabinete do Ministro da Educação e servidor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Manuel Bandeira foi inspetor federal de ensino e professor de literatura do Colégio Pedro II. Guimarães Rosa, além da longa e representativa carreira diplomática (diplomata, cônsul, secretário de embaixada, secretário e representante de delegações brasileiras em Paris, na ONU e na UNESCO), foi, primeiro, médico da Força Pública do Estado de Minas Gerais.
E mais: José de Alencar, do Instituto Mercantil da Corte; Cecília Meireles, professora de literatura de universidade federal; Lima Barreto, escriturário do Ministério da Guerra. Atualmente: Itamar Vieira Júnior, famoso pelo sucesso de “Torto Arado”, é geógrafo do Incra. Seu trabalho nos territórios quilombolas influenciou sua narrativa.
Há vários. Mas a imagem que se tem do serviço público é de um espaço ocupado pela falta de criatividade, pela burocracia e desmotivação. Nenhuma criança sonha ser servidor público quando crescer. Quer ser salvadora de mundos, revolucionária das ideias, artista, médica, engenheira etc. A busca da independência financeira, geralmente, é o mote pra escolha da profissão na fase adulta.
Mas quem são os servidores públicos? São médicos, engenheiros, professores, agentes da saúde, policiais, bombeiros, procuradores. Pessoas que fazem funcionar as instituições públicas, sem visibilidade individual. Expedem documentos, cumprem diligências, lavram autos, salvam pessoas, curam doenças, fazem curativos, evitam tragédias que a população nem imagina por acontecerem. Ensinam crianças, corrigem provas escolares, analisam processos, investigam fraudes, protegem nossa integridade física. A maioria trabalha além do possível, sem verba nem estrutura suficiente, e sem reconhecimento.
A criança que sonhou pode, sim, trabalhar na sua profissão no serviço público. De mãos dadas com o compromisso social, pode fazer a diferença, revolucionar ideias e salvar mundos porque o serviço público impacta diretamente a vida do cidadão, lidando com problemas importantes, como saúde, educação, direitos essenciais.
Quanto mais sensíveis, mais se enriquecem com as histórias vividas. Por que a surpresa por alguns transformarem vida em arte?
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Escrevo-lhes no Dia do Servidor Público, assistindo à cidade sitiada, pela tevê. Caos, barricadas. Uma operação idealizada por agentes políticos, munidos de interesses diversos, resulta em resposta violenta. Na rua, todo o efetivo da polícia, até os servidores de folga convocados, para garantir a segurança da cidade e a liberação dos acessos da população a seus lares. No Centro de Operações, servidores monitoram as câmeras do tráfego pra orientarem a polícia e os cidadãos. Nas vias, bombeiros desmontam focos de incêndio, socorrem acidentados. Guardas municipais gerenciam os gargalos no trânsito, reduzindo a exposição da população ao perigo. Nos hospitais, permanecem os plantões. Servidores públicos, comprometidos com as diversas camadas da sociedade, a protegem e a fazem girar. Seguram a casa pra ela não cair. Não só hoje mas, também, nos dias comuns.


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com César Manzolillo













