Com Ana Lúcia Gosling
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Foto: Arquivo pessoal da autora
Achava ser um cãozinho, como em meu signo chinês. Mas descobri ser ratazana, considerando a quantidade de lixo que venho guardando.
Nesses arroubos provocados pelo sentimento de novo ciclo, novas energias, decidi arrumar o quarto da área de serviço, aquele em que se põe tudo o que não orna com sua sala de estar, nem cabe nos seus armários, mas, por apego, não se joga fora. A tarefa me tomou muito mais tempo do que poderia imaginar.
É feio mas confessarei: não tinha ideia do desnecessário acumulado nos últimos anos. Por que me parecia importante guardar uma caixa de garrafa plásticas da água de coco da feira? Por serem bonitinhas, terem tampa e um plástico firme? Pra descartar óleo de cozinha, bastava uma em reserva. Pra usar como garrafa? Não cola: tenho garrafas térmicas, próprias pra academia, viagem, trilha. A “pet” da feira não seria a primeira opção.
A tentação pelos copos de geleia e vidros de palmito já superei há tempos. Tenho um copinho pra medidas e um vidro pro caso de uma lagarta fazer casulo na minha varanda. Foi assim que, no passado, pude dar uma chance ao bicho de viver, salvando, também, minhas plantas de uma eventual praga.
Caixas de sorvete pra congelar feijão foram abolidas há anos. Dá pra perceber que tenho alma de pobre (afirmativa preconceituosa mas você entendeu, né?) mas congelo feijão em pote de vidro, pra poder ir ao micro-ondas, em emergência. Pareço esnobe mas sou prática.
Problema real: os papéis! Na era digital, conservava, ainda, bolsa e gaveta de contas de concessionárias, pagas, da minha casa, da casa dos meus pais. Algumas tão velhas que ainda estavam em nome do antigo morador. O que se passou na minha cabeça? Que a Light, dez anos depois, cortaria minha luz, por um débito descoberto só agora?
Livrar-se de contas é fácil. Duro é analisar a mistura aleatória de prova escolar de filho, receita de bolo, cardápio de restaurante com entrega, folhetos de propaganda… Não dá pra jogar fora, simplesmente. O trabalho é arqueológico: entre duzentas folhas descartáveis, há um desenho especial do filho-criança ou um “eu te amo, mãe” que, hoje, só surge sob chantagem emocional. Uma foto que julgava perdida, uma anotação com a letra da mãe falecida.
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Foto: Arquivo pessoal da autora
Achei editais redigidos, de brincadeira, pra motivar minha equipe a fazer as tarefas de que menos gostavam, prometendo, em troca, pagar uma pizza pra todos. Quando o dia acabava em pizza, era porque muito se trabalhara, subvertendo a piada em relação à expressão original. Sorri, saudosa dos amigos que fiz na luta diária. Um bilhete de uma advogada, com desculpas por ter-me destratado, reconhecendo o esforço em ajudá-la, me comoveu de novo, como há anos. Pedir desculpas é gesto nobre. Em silêncio, senti carinho por ela e orgulho de mim. O desenho da mão do meu filho, em contorno, de quando o levei, em suas férias, ao trabalho. Nada especial para qualquer outra pessoa na face da Terra, mas me trouxe a memória fresca da sua inocência e da sua alegria, empurrando o carrinho de processos, carimbando folhas.
Joguei muita coisa fora e ainda há mais a verificar. No garimpo, tesouros se revelaram. Extraí história e carinho, desperdiçados no fundo do apartamento. Por que a preguiça não me permitiu fazer isso em espaços mais curtos de tempo? Revisitar o que escolhemos guardar é muito bom!
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com César Manzolillo