Um breve memorial da Literatura

 

Muitos dias em casa. Meses. Equilibrando as notícias de um mundo adoecido, fisica e psicologicamente. Criando recursos para manter acesas as fagulhas de alegria e de esperança. Vamos preservando a saúde mental em meio a neuroses, fobias, estados depressivos que se agravam nessa época. Aceitando que isso é natural, diante da descoberta dessa nossa fragilidade (não mais íntima e pessoal mas de toda a raça, em todo planeta). Dançamos, lemos, assistimos às lives, procuramos os amigos, ouvimos música, trabalhamos e vamos sonhando com a vida que nos espera no fim do túnel, adubando os afetos.

Mas há dias e dias. Há os de triste despedida. No mundo literário, dissemos adeus a escritores extraordinários. Eles se foram em datas tão próximas que nem conseguimos homenageá-los.

Faz pesar nos nossos corações. Mas, quando um literato parte, a beleza está em sabermos que, na verdade, ele fica. Nas palavras semeadas, nas ideias partilhadas, ele é sempre semente e inspiração para a construção de novas realidades e de novos mundos. Nosso carinho e gratidão por seus papéis fundamentais na Literatura.

Rubem Fonseca. Foto: Divulgação/Zeca Fonseca.

RUBEM FONSECA – Escreveu livros emblemáticos da literatura nacional, como “Feliz Ano Novo”, “Agosto” e “A Grande Arte”. Excelente contista também. Para muitos críticos, trouxe uma “mentalidade urbana” para a literatura brasileira. Sua narrativa possui muita oralidade, erotismo e violência, além de tramas muito bem tecidas. Sua obra foi adaptada para o cinema e a tevê. Ganhou diversos prêmios como escritor em sua carreira, inclusive o “Camões”, o mais importante da língua portuguesa.

“…No princípio, esse princípio era bom: nós ficávamos nus e fingíamos, sabendo que fingíamos, que estávamos à vontade. Ela fazia pequenas coisas, arrumava a cama, prendia os cabelos mostrando em todos os ângulos o corpo firme e saudável – os pés e os seios, a bunda e os joelhos, o ventre e o pescoço. Eu fazia uns mergulhos, depois um pouco de tensão de Charles Atlas, como quem não quer nada, mas mostrando o animal perfeito que eu também era, e sentindo, o que ela também devia sentir, um prazer enorme por saber que estava sendo observado com desejo, até que ela olhava sem rebuços para o lugar certo e dizia com uma voz funda e arrepiada, como se estivesse sentindo o medo de quem vai se atirar num abismo, “meu bem”, e então a representação terminava e partíamos um para o outro como duas crianças aprendendo a andar, e nos fundíamos e fazíamos loucuras, e não sabíamos de que garganta os gritos saíam (…) Mas naquele dia ficamos parados como se fôssemos duas estátuas. Então me envolvi no primeiro pano que encontrei, e ela fez o mesmo e sentou-se na cama e disse “eu sabia que ia acontecer” , e foi isso, e portanto ela, que eu considerava uma idiota, que me fez entender o que tinha acontecido. Vi então que as mulheres têm dentro delas uma coisa que as faz entender o que não é dito. “Meu bem, o que foi que eu fiz?”, ela perguntou, e eu fiquei com uma pena danada dela; com tanta pena que deitei ao seu lado, arranquei a roupa que a envolvia, beijei seus seios, me excitei pensando em antigamente, e comecei a amá-la, como um operário em seu ofício…” (trecho de “A força humana”, do livro “O homem de fevereiro ou março”).

Olda Savary. Foto: Divulgação.

OLGA SAVARY – Poetisa, contista, romancista, jornalista e tradutora, mulher dedicada integralmente às Letras, ela imprimiu a narrativa feminina no campo da sexualidade e do erotismo para a literatura brasileira. Foi a primeira mulher a escrever um livro de poemas eróticos no Brasil (“Magma”). Sua escrita, no geral, incluindo-se a erótica, era refinada e elegante. Também ganhou diversos prêmios em sua carreira e foi a responsável pela tradução para o Brasil de grandes nomes da literatura latino-americana, como Jorge Luis Borges e Júlio Cortázar. Escreveu os premiados “Espelho Provisório”, “Sumidouro” e “Berço Esplêndido”.

“Daqui dou o viver já por vivido.
Quero estar quieta, sozinha agora,
igual a uma cobra de cabeça chata,
ficar sentada sobre os meus joelhos
como alguém coagulado em outra margem.
Daqui dou o viver já por vivido.”  (em “Sextilha Camoniana”, no livro “Semidouro”)

Aldir Blanc. Foto: Alaor Filho (Estadão).

ALDIR BLANC – Muitos pensam nele como um grande compositor da MPB. Mas ele era um escritor de livros também. Contista, com histórias ambientadas, principalmente, na zona norte carioca. Também escreveu crônicas para alguns jornais de grande circulação: O Dia, O Globo e O Estado de São Paulo. Entre seus livros, citamos “Rua dos Artistas e Arredores”, “Brasil passado a sujo” e “Vila Isabel – Inventário de Infância”.

“…Foi andando, meio perdido, pela Conde de Bonfim. Melhor comprar uma garrafa no Sokana. Vai ser um fim de semana meio brabo. Não esquecer os engovs, umas latas pra rebater, passar no jornaleiro…O carro freiou com estardalhaço.

– Pensando na morte da bezerra, cara, ou tá de porre?

– Tudo bem, irmão.

– Tudo bem, o escambau! Tá a fim de morrer?

– Ainda não, irmão, muito pelo contrário…

– Ah, vá pro inferno!

– Tô indo, irmão. Só mais um pouquinho de paciência…

Na rua amiga de tantos anos, parou estarrecido diante da manchete: VASCO PERDE OUTRA VEZ.

Gaguejou:

– Perdeu pros argentinos? Em São Januário?

Um vizinho solícito:

– Paciência…

Quebrou a garrafa na cabeça do coitado.

– Paciência é o cacete, morou? Paciência é os quiba!

Existem coisas que mesmo o mais paciente dos homens não pode suportar”.

(trecho de “Perfil de um torcedor paciente”, publicado na Tribuna da Imprensa).

 

Sergio Santanna. Foto: Barbara Lopes (O Globo)

SERGIO SANT’ANNA – Contista, romancista, poeta e professor, era considerado um “mestre dos contos”, um dos principais contistas da literatura nacional. Sua obra também ganhou diversos prêmios e foi adaptada para o cinema. Foi colunista dos jornais Folha de S. Paulo, Estado de São Paulo, O Dia e Jornal do Brasil. Alguns de seus livros: “Um Crime Delicado”, “O Concerto para João Gilberto no Rio de Janeiro” e “O Homem-Mulher”. Seu último conto foi publicado na Revista Época e impressiona pelo simbolismo que se associa aos seus últimos dias de vida. Segue trecho abaixo:

“…Mas o que me leva a vir para a sacada de madrugada, mais do que as estrelas, é contemplar a dama de branco, que circula pelo estacionamento a céu aberto do edifício, sempre às três da manhã. Todos estão dormindo e fico contente com isso, pois, com ninguém mais a contemplá-la, é como se a dama de branco me pertencesse exclusivamente. / Entendi por que ela sempre vem a essa hora. É porque não há ninguém a importuná-la, reclamar que ela não está usando máscara, como se tornou obrigatório fora de casa. Imagino ver as suas feições, reparar como é bonita. Uma beleza singular, que não consigo descrever. (…) Então a dama de branco teria experimentado várias relações, sempre com um sentido de incompletude, até que chegou este tempo da peste e ela está em isolamento como eu. Às vezes, penso que a dama de branco é a própria morte. Sei que isso é um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que em outro momento pensarei outra coisa. A morte não passa de uma obsessão minha. / Pelo menos é isso que imagino neste momento…” (trecho de “A Dama de Branco”, publicado na Revista Época)

Luiz Alfredo Garcia-Roza. Foto: Marcus Michael (FolhaPress)

LUIZ ALFREDO GARCIA-ROZA – Escritor premiado, dedicado a uma literatura policial, com personagens de livros popularizados pela tevê e pelo cinema, como o Detetive Espinoza. Seu primeiro livro de ficção foi publicado quando o escritor tinha 60 anos de idade. Seus romances se ambientam na cidade do Rio de Janeiro (principalmente Copacabana) e diferenciam-se por serem histórias policiais muito mais centradas nos sentimentos humanos, em dramas pessoais, do que na abordagem dada ao crime nos jornais (tráfico, violência etc). Entre seus livros, “O Silêncio da Chuva”, “Achados e Perdidos” e “Berenice”, estes, inclusive, adaptados para o cinema. Também possui publicações na área da psicanálise, sua formação acadêmica.

“…ele havia lido também que na memória nada se perde, que o passado se conserva integralmente, e que o esquecimento é uma defesa contra a emergência desse passado armazenado cada vez que precisamos recorrer a ele. Isso queria dizer que a função maior e mais importante da memória não é lembrar, mas esquecer. Esquecemos para não nos afogarmos num interminável tsunami de lembranças…” (trecho do romance “Um lugar perigoso”)

Luis Sepúlveda. Escritor Chileno. Foto: Reprodução.

LUÍS SEPÚLVEDA – Jornalista e ativista político, que deixou o Chile fugindo da Ditadura Pinochet, Sepúlveda vivia na Espanha e, no campo literário, era, principalmente, um romancista, embora tenha escrito também roteiros e ensaios. Recebeu prêmios na Europa e no Chile e sua obra também sofreu algumas adaptações para o cinema. Entre seus livros mais conhecidos, “Um velho que lia romances de amor” e “História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar”.

“…E quanto a beijar, como dizia?, “ardorosamente”. Como diabos se faria isso? Lembrou de ter beijado muito poucas vezes Dolores Encarnación… Talvez numa dessas raras ocasiões tenha feito assim, ardorosamente, como Paul do romance, mas sem saber disso. Em todo caso, foram muitos poucos beijos porque a mulher, ou respondia com ataques de riso, ou dizia que podia ser pecado. Beijar ardorosamente. Beijar. Descobriu nesse instante que fizera isto muito poucas vezes e apenas com sua mulher, porque entre os shuares beijar era um costume desconhecido…” (trecho de “Um velho que lia romances de amor”)

MARCUS VINICIUS QUIROGA – Poeta mas também contista, ensaísta, crítico literário e professor em oficinas literárias. Alguns de seus livros premiados: “Campo de Trigo Maduro” e “Manual de Instruções para Cegos”.

Marcus Vinicius Quiroga. Foto: Reprodução Redes Sociais.

Ele nos abriu seu último livro, “Isto não é Pintura”, para, com o poema “Paloma de Picasso”, participar da nossa campanha “Para a gente lembrar da poesia da vida”. Sua participação nos honrou enormemente e ele está eternizado, com toda nossa gratidão e carinho, em nossa galeria:

 

 

 

 

 

 

ANA GOSLING

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

One comment

  • Grandes perdas! Quanto tempo de vida a mais nos daria cada dia a mais de vida deles? Morremos um pouco no futuro.

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