Torto Arado que também no teatro de torto nada tem

Foto: CAIO LIRIO

 

Não há nada mais potente para uma nação do que suas histórias. Por meio delas, compreendemos sua evolução — e isso é grandioso. Assim acredito, e é o que tenho percebido com toda a minha experiência teatral.

Vamos falar de Torto Arado, um espetáculo baseado na literatura, inspirado em um livro premiadíssimo e contemporâneo. Eu mesma não conhecia a obra, e descobrir sua existência foi um marco para mim — inclusive por trazer explicações para o meu próprio passado.

Sinopse

Torto Arado é um romance brasileiro publicado em 2019, escrito pelo autor baiano Itamar Vieira Junior. A obra conta a história de duas irmãs, Bibiana e Belonísia, marcadas por um acidente de infância, e que vivem em condições análogas à escravidão em uma fazenda no sertão da Chapada Diamantina. O romance foi originalmente publicado em Portugal, pela editora LeYa, após vencer o Prêmio LeYa. No Brasil, é publicado pela editora Todavia. Além desse prêmio, conquistou outros importantes reconhecimentos, como o Prêmio Jabuti 2020 e o Prêmio Oceanos 2020.

Segundo o próprio autor, o romance tem como influências autores regionalistas da chamada Geração de 30 do Modernismo brasileiro, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz — e isso é claramente visível, o que considero fantástico, afinal estamos falando de gigantes da literatura.

Nesse sentido, a narrativa traz aspectos muito próprios da Bahia, onde é ambientada. Um deles são os ritos do Jarê — religião de matriz africana existente apenas na região da Chapada Diamantina. Seu surgimento está ligado ao período da mineração, marcado pela presença significativa de mão de obra escravizada e de africanos, sendo o Jarê uma prática religiosa menos conhecida que o Candomblé e a Umbanda, mas igualmente rica e importante. Esses elementos fazem parte central da narrativa.

Embora a história seja situada na Bahia, o modelo agrário análogo à escravidão retratado no livro ocorreu em muitas outras regiões do Brasil.

Essa é a sinopse do livro. Mas o diretor do espetáculo foi além — ousado e capacitado, realizou um mergulho profundo na essência da obra, sem comprometer sua base literária. E isso me pareceu fantástico.

A Bahia é imensa e vai muito além de Salvador ou das cidades com praias paradisíacas. É um estado com vastas regiões interioranas, ricas em cultura e história.

A história, contada no palco, me levou ao passado. Minha mãe tinha uma irmã, uma galega de olhos claros, muito pobre e com mais de uma dezena de filhos — o que era comum na época. Ela viveu em condições similares às retratadas no livro, no interior do Espírito Santo. Quando eu tinha treze anos, conheci o lugar: uma casa simples, sem luz elétrica. A água vinha de uma nascente. Havia um fogão a lenha, nenhuma geladeira, e atrás da casa, nos montes, uma enorme plantação de café. A educação era precária e distante dos locais onde os “empregados” viviam. Meus primos acordavam às quatro da manhã para trabalhar na lavoura do dono da fazenda. O almoço era servido às 9h30, e depois voltavam ao roçado para plantar o que sustentava a própria família.

Minha tia Andrelina ainda está viva. Hoje mora na cidade, na casa de uma neta que veio tentar a vida no Rio de Janeiro. Lembro que, ao chegar naquela roça, um dia, um gavião passou voando perto da minha cabeça com uma cobra no bico. Essa memória nunca me deixou.

Concluo que o autor, por sua formação, pesquisa e ofício, foi impecável.

Na montagem teatral, a maioria dos artistas são baianos. Mais uma vez, comprova-se o talento cênico desse povo, que brilha a cada segundo em um espetáculo com mais de 120 minutos de duração. Uma beleza descomunal. Vozes, atuações, expressões faciais e corporais que vão muito além do que esperamos. Entre eles, Larissa Luz, que transita com leveza e força na cena, nos levando ao céu como Bibiana. Por meio dessa personagem, compreendemos também a importância da educação.

A musicalidade é tão perfeita que nos deixa boquiabertos.

A estética do espetáculo vem carregada de verdade. As vestimentas são verossímeis e o que se diz sobre o mundo espiritual nos revela um Brasil cultural ainda encoberto para muitos. Ao pesquisar sobre o Jarê, encontrei uma paleta de cores riquíssima que me remeteu à nossa América Latina. Tentei entender o que tanto me encantou, e a resposta veio como um acorde: “A afrolatinidade é muito potente”, disse Elísio.

“A morte é uma mistura de referências, assim como o Jarê. A característica dessa religião é a mescla entre Candomblé, Umbanda, Catolicismo, Espiritismo e cultos indígenas. Dentro disso, partimos da referência dos bakulos para construir a morte sob o olhar do Jarê. A cor da máscara realmente remete à cultura latina — e achamos isso positivo, pois essa mistura é a essência do Jarê.”

Quanta determinação em defender a cultura dos povos!

Essa coragem do diretor e dramaturgo resultou em uma beleza indescritível, nos levando ao Brasil profundo, onde os povos originários também estão presentes — afinal, a Chapada era habitada por indígenas. Essa referência legitima cada fazedor de cultura, cada criativo que ousa e trabalha com conhecimento.

“Tem outra referência importante nessa cena: ‘Vanités’, palavra francesa que significa ‘vaidades’. Em arte, ‘vanitas’ refere-se a um tipo de pintura que representa a efemeridade da vida”, explicou o diretor.

A representatividade negra no palco está em escala elevada. Falo de artistas concentrados, com talento e entrega. É possível esquecer os corpos dos intérpretes para enxergar apenas os personagens — cada profissional deixou seu ego no camarim e trouxe à cena suas personagens com emoção. Isso conecta o público à história.

A iluminação é rica. Traz “fotografias” impactantes e nos faz mergulhar nos espaços cênicos.

O cenário é extraordinário: cenas são construídas e desconstruídas em segundos, em perfeita harmonia com a iluminação. O diretor Elísio Lopes trouxe dinamismo a uma obra longa e densa. Até a batata-doce — produto que movimentava a economia local — tem lugar na peça, apontando para a minuciosa pesquisa do orquestrador.

A obra foi apresentada também em escolas públicas — o que vejo como parte da construção de um Brasil mais consciente de sua própria história, e, assim, menos “torto”.

Parabenizo o Ministério da Cultura, que tem compreendido a importância de abrasileirar o teatro, nos libertando do eurocentrismo e nos ajudando a compreender melhor quem somos.

Sobre a Nu (ou Nubank), startup brasileira patrocinadora do espetáculo: a escolha fortalece ainda mais a brasilidade da marca. Fico extremamente orgulhosa dessa empresa, que entende nossa carência de criar patriotas — mesmo com nossas falhas e histórias vergonhosas. Afinal, é por elas também que aprendemos o certo, desconstruindo padrões opressores e antiquados. Muito obrigada!

Parabéns também à empresa produtora, que entende a riqueza que tem nas mãos e vem abrindo caminhos em um mercado que antes tinha donos. Furou a bolha e conquistou respeito no ramo do entretenimento. Sem falar no trabalho de mídia: belo e vigoroso.

Parece que o Brasil, ao menos no teatro, já não está mais em ladeira abaixo…

E não posso deixar de mencionar a atriz Lilian Valeska — uma joia carioca que carrega consigo a ancestralidade do povo brasileiro, queiram ou não. Ela é sempre magnífica no que faz.

 

SERVIÇO

Torto Arado – O Musical
– Onde: Teatro Riachuelo Rua do Passeio, 38/40 – centro – Rio de Janeiro
– Quando: Estreia em 17/05, às 20h. De 17 de maio a 15 de junho (Quintas e Sextas: às 20. Sábados: às 16h e às 20h. Domingos: às 16h).
– Ingressos: a partir de R$ 40,00
– Classificação: 14 anos
– Vendas: ingresso.com e bilheteria do teatro
https://www.ingresso.com/espetaculos/torto-arado-o-musical

 

Ficha Técnica:

Diretor artístico e dramaturgo: Elísio Lopes Jr.
Dramaturgos: Fábio Espírito Santo e Aldri Anunciação
Diretora assistente e preparação de elenco: Ana Paula Bouzas
Diretores assistentes: Ridson Reis e Ricardo Gamba
Coordenadora geral e idealizadora do projeto: Fernanda Bezerra
Assistente de coord. geral: André Oliveira
Coordenador técnico: José Raimundo
Coordenadora de produção artística: Patrícia Oliveira
Assistente de produção artística: Kim de Vasconcelos e Araújo
Coordenadora de comunicação: Ariadiny Araújo
Gestora de redes sociais: Duane Carvalho
Diretor de palco: Cleiton Oliveira
Produtor de palco: Lucca Oliveira
Produtoras de logística e montagem: Michelle Diniz e Fernanda Cardonski
Fotógrafo: Caio Lírio

ELENCO

Donana e Santa Rita Pescadeira Lílian Valeska | Bibiana Larissa Luz | Belonísia Bárbara Sut | Stand in Bibiana e Dona Tonha Cainã Naira | Maria Cabocla Raynna | Zeca Chápeu Grande e Policial Diogo Lopes Filho | Salustiana Denise Correia | Crispina, Stand in Dona Tonha, Encantado e Carmelita Érica Ribeiro | Hermelina, Crispiniana e Encantado Sueli Ramos | João do Lajedo, Aparecido e Encantado Ofalowo | Servó, Tobias e Encantado Anderson Danttas | Salomão, Prefeito Ernesto, Médico e Encantado Ivan Vellame | Sutério e Encantado Tariq | Estela, Firmina e Encantado Ana Barroso | Severo Guigga | Saturnino, Policial e Encantado Jai Bispo | Dance captain (São Paulo) Jai Bispo | Preparação Vocal (São Paulo) Tariq.

 

Um abraço a Bahia, estado que sempre chorei ao aterrissar num avião nessa terra, estado que amo de alma, um abraço ao território que resumo em Dorival e Jorge Amado, ao Wagner Moura e Lazaro Ramos de “Ó Paí, Ó”, resumo no acarajé, peixada baiana e o bobó, a Bahia das fazendas de cacau, a Bahia de Morro de São Paulo e baia de Todos os Santos, a Bahia que também resumo a um menino que vi dançar com o corpo de mola aos meus vinte e poucos anos na Passarela do Álcool, a Bahia do Olodum, do Caetano, Bethania, Gal e Gil, da Daniela e sua representatividade de gênero, a Bahia das fitas coloridas e alegres do Senhor do Bonfim, a Bahia da indígena Catarina Paraguaçu, conhecida como mãe dos brasileiros, Da Mãe Menininha do Gantoes, a Bahia da comunidade de Alagados, tema de uma das maiores músicas do país, Bahia da nossa heroína de guerra MARIA FELIPA DE OLIVEIRA, Bahia de Abrolhos, um dos maiores berçários do mundo das baleias jubartes, já visitado por mim e agora a Bahia de “Torto ARADO” em todas as suas linguagens artísticas, aquele abraço a todos e a tudo isso que trago no meu sangue!

Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

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Author

Dramaturga, com textos contemplados em editais do governo do estado do Rio de Janeiro, Teatro Prudential e literatura no Sesi Firjan/RJ. Autora do texto Maria Bonita e a Peleja com o Sol apresentado na Funarj e Luz e Fogo, no edital da prefeitura para o projeto Paixão de Ler. Contemplada no edital de literatura Sesi Fiesp/Avenida Paulista, onde conta a História de Maria Felipa par Crianças em 2024. Curadora e idealizadora da Exposição Radio Negro em 2022 no MIS - Museu de Imagem e Som, duas passagens pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com montagem teatral e de dança. Contemplada com o projeto "A Menina Dança" para o público infantil para o SESC e Funarte (Retomada Cultural/2024). Formadora de plateia e incentivadora cultural da cidade.

5 comments

  • Paty, querida, seu texto é uma celebração sensível e inteligente da força do teatro como ferramenta de expressão cultural e resistência. Quando vc fala de ancestralidade, musicalidade e estética cênica, o seu olhar vai além da análise técnica e mergulha na potência simbólica dessa obra q tô doido para ver. Tentando ir nessa sexta. O texto tá transmitndo emoção e respeito, e você, como sempre, valorizando tanto o espetáculo quanto os profissionais envolvidos na sua criação. Obrigado por fazer parte ao time ArteCult

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  • Paty, quanta pulsão descrita em cena, quanto emoção no seu olhar. Já fiquei com vontade assistir ao espetáculo. É sempre um risco enorme adaptar obras literárias e bagunçar o imaginário do leitor. Pelo que você descreve, Elísio Jr não só acertou como acrescentou camadas ao romance. Deu água na boca do espectador. Vou lá. rs. Parabéns pelo texto!

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