Tempo espiralar: a eterna mudança.

Arte: ArteCult / ChatGPT

Tempo espiralar: a eterna mudança.

 

“Sente-se, levante-se

Prepare-se para celebrar

O Deus mudança

O eterno Deus mudança

Talvez em paz mudança

Talvez com sua lança”.

(Música ‘O eterno Deus Mu Dança,

de Gilberto Gil)

 

Na língua portuguesa o substantivo feminino ‘espiral’ pode ser interpretado como caracol, hélice ou como “um processo difícil de conter”, conforme vemos no dicionário de Cegalla. Mas nós, indivíduos forjados pela contemporaneidade do século XXI, não lidamos muito bem com o movimento natural, que surge a partir da espiral do tempo: a mudança. Em maior ou menor grau a mudança em si é algo que nos causa incômodo e desconforto. Embora seja real e inevitável.

Na história da filosofia, um dos primeiros filósofos a pensar a ideia da mudança foi Heráclito de Éfeso, que está cronologicamente situado como um pensador pré-socrático. Aqueles primeiros filósofos voltaram-se para os questionamentos em torno da explicação por um princípio (do grego arkhé) da natureza (phisis). E para o efésio, em seus fragmentos, vemos que a natureza é regida por um eterno e incessante movimento, como podemos constatar no Fragmento 30:

“o mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez, mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando” (p. 79).

Neste sentido, o universo continua trabalhando em permanente mudança, como um fogo eterno, perfeito em sua essência, com “medida”, com uma racionalidade intrínseca e que jamais cessa e tudo transforma. Porque nada permanece. Nada dura para sempre. Nada ficará como é. Porque assim tem sido desde sempre. Tudo muda e finda e se inicia.

Heráclito nos diz ainda, no Fragmento 64, que “o raio conduz todas as coisas que são” (p. 87). Fechemos os olhos e façamos uma pausa silenciosa para pensar a ‘imagem’ deste fragmento. Um ‘raio’, com sua força e intensidade, atravessando o espaço e arrastando tudo consigo. E para uma referência bem explícita sobre a força de transformação que é o Reino da natureza – e com “R” maiúsculo, porque é um infindável espaço onde eu, você e tudo o que há (animais, minerais e vegetais), somos unidades mínimas que compõe um cosmos infinito e soberano.

A mudança não surge da e na permanência.

Mas a mudança em si, para nós, homens do senso comum (mas em contínua reflexão e aprendizado) não é facilmente assimilável ou ainda aceitável. Porém, a mudança faz parte da constituição do universo. E quem somos nós nesta escala cósmica? O que estou pensando, falando e como estou agindo diante desta imensa composição cósmica?

Enquanto estamos e somos e existimos (olha o verbo ‘ser’ em sua potência de significados), que possamos estar e ser e existir na possibilidade de nossa máxima intensidade: bem agindo, com prudência, numa vereda de partilha de afetos, de um bom éthos e de boas experiências. Afinal, somos indivíduos lançados na esteira do perpétuo conhecimento, seguindo o ensinamento heraclítico “eu me busco a mim mesmo” (Fragmento 101, p. 97) ou ainda “é dado a todos os homens conhecer-se a si mesmos e pensar” (Fragmento 116, p. 101).

E para abrir a porta deste caminho de autorreflexão e de autoconhecimento temos a Filosofia, como uma sábia senhora, conduzindo-nos a um caminho de metamorfose da percepção do mundo. Porque é neste sentido que precisamos estar atentos.

Muitas vezes somos atravessados por temores e angústias – de proporções variadas – de algo que desconhecemos e outras vezes não desejamos. Mas tudo o que não temos acesso é um não ser. Um algo que absolutamente ainda (ou quem sabe nunca) não nos foi manifestado (como um fenômeno), e por isso não está aqui e agora. Sendo assim não devemos nos inquietar com o que não é, mas unicamente e com toda nossa intensidade para o instante presente do aqui e agora. Eis o que nos cabe.

Como nos fala Ailton Krenak, filósofo dos povos originários e membro da Academia Brasileira de Letras, na obra Um rio um pássaro, lançada no Brasil em 2023:

“é libertador você acreditar que tudo se move e que você mesmo está indo para um outro lugar desconhecido. (…) A gente não precisa responder à dureza do mundo com violência. A gente pode responder à dureza do mundo com o movimento que a água faz. A água, quando ela encontra uma resistência muito forte, muito dura, ela forma uma cachoeira maravilhosa. Ela explode em energia que se espalha na atmosfera, alcançando o sentido do prana”. (p. 72-3).

 

Portanto, não tenhamos receio. Ou pelo menos façamos um exercício de autorreflexão, sempre que assim nos sintamos ameaçados pelo temor. A mudança sempre virá em todos os níveis. E nós somos parte de um universo que flui e se transforma a todo instante: espiralmente. Algo que não vamos conseguir conter. Independentemente de nossa vontade ou de nosso receio.

O mais importante, por fim, é que saibamos que somos seres em contínua alteração, como nos lembra Raul Seixas, na sua canção Metamorfose ambulante:

“Prefiro ser essa metamorfose ambulante

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Sigamos! Tendo em mente nossa condição efêmera, mas ao mesmo tempo partícipes desta imensidão cósmica. E ainda, sejamos leves conosco e com os outros…porque como nos lembra Krenak, em Um rio um pássaro:

“E a vida é dança, e é uma dança cósmica” (p. 74)

 

ZAL

Zalboeno Lins (ZAL). Foto: Divulgação

 

 

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

  • ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leal e Sérgio Wrublewski. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
  • CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário escolar da língua portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.
  • KRENAK, Ailton. Um rio um pássaro. Tradução Yoshihiro Odo. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2023.

 

 

 

 

 

Author

Me chamo Zalboeno Lins, mas pode me chamar de Zal.☺️ Sou graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento do RJ e atualmente faço Mestrado em Filosofia Antiga pela UERJ. Também apresento palestras de temas de Filosofia num programa interno da Claro. E mais recentemente, também dou aulas para o CEFS - Centro de Estudos Filosóficos de Santos. Mas acima de tudo, sou um grande admirador da Filosofia, como meio de nos resgatar do senso comum...☺️ Num direcionamento de uma vida feliz!

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