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O mito de Sísifo e a nossa realidade contemporânea
“Saia do meu caminho
Eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida a minha vidaNão preciso que me digam
De que lado nasce o Sol
Porque bate lá meu coração, hmm.”(Comentário a respeito de John[1])
O artigo de hoje começa falando do mito de Sísifo, que é narrado por Homero, poeta grego, na sua Odisseia, no Canto XI, dos versos 593 ao 600[2]:
“Vi, também, Sísifo, e o modo por que ele, com pena indizível
Com as mãos ambas tentava arrastar uma pedra enormíssima.
Firma os dois pés no chão duro, com ambas as mãos esforçando-se
Para levar para cima o penedo; mas quando pensava
Que já vencera o alto monte, com força outra vez retornava.
Dessa maneira, até o plano, rolava o penhasco impudente.
Ele de novo a empurrá-lo começa, suor escorrendo-lhe
Dos membros todos, enquanto a cabeça de poeira se cobre.”
E o que é um mito afinal? Para o professor José Benedito de Almeira Júnior, em seu livro Introdução à Mitologia[3], o mito é a:
“coletânea de narrativas de um povo; assim temos a mitologia hindu, mitologia asteca, mitologia grega, mitologia yorubá, dentre outras.” (p. 17).
E sobre este mito, o filósofo francês Albert Camus[4] escreveu um ensaio que gravita sobre alguns temas tão atuais, desde Homero até nossos dias – assuntos como escolhas, medos, absurdos e liberdades. Tudo no plural porque Camus foi um pensador plural e um escritor que se dedicou a refletir sobre os problemas que nos atravessam (desde sempre). O Mito de Sísifo[5] foi publicado pela primeira vez em 1942, em plena 2ª Guerra, um período de crises, de muito sofrimento e de rupturas.
No seu ensaio, Camus nos diz que:
“Os deuses condenaram Sísifo a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso. Pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança.
[…]
Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter (Zeus). O pai estranhou seu desaparecimento e se queixou a Sísifo. Este, que estava sabendo do rapto, ofereceu-se para instruir Asopo, com a condição de que ele desse água à cidadela de Corinto. Preferiu a bênção da água aos raios celestes. E como castigo acabou nos infernos.
Homero nos conta também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão (Hades) não pôde suportar o espetáculo de seu império deserto e silencioso. Enviou o deus da guerra (Ares), que libertou a Morte das mãos de seu vencedor.” (p. 137).
O filósofo toma Sísifo como uma metáfora para a condição humana, argumentando que a vida é essencialmente absurda (para mais e para menos; é ao mesmo tempo um adjetivo que significa espanto e repulsa), pois buscamos constantemente sentido e propósito em tudo o que fazemos. E aqui chamo a atenção para o sentido utilitarista imposto pelo sistema neoliberal, onde qualquer coisa precisa necessariamente ter utilidade prática.
Camus sugere que a tomada de consciência do absurdo da existência pode algumas vezes levar ao desespero, mas também pode ser uma fonte perene de liberdade. Ele sugere que, ao aceitar (olha aí o poder do livre-arbítrio) o absurdo e seguir vivendo com ele, podemos encontrar um tipo de felicidade ou talvez de encantamento. Sísifo escolhe ajudar Corinto ao invés de ser indiferente em relação ao rapto de Egina. Camus afirma mais adiante que “Sísifo é o herói absurdo.” (p. 138), por suas paixões e tormentos. Por outro lado vive cercado de angústias e do imperativo das escolhas, como qualquer um de nós. Mais adiante, Camus afirma que:
“Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. No caso deste, só vemos todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé que a retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente humana de duas mãos cheias de terra.
Ao final desse prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a meta é atingida. Sísifo contempla então a pedra despencando em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta à planície”. (p. 138).
Neste sentido, considero que é durante esta caminhada que ocorre uma ‘pausa’ no trabalho repetitivo e cansativo, onde devemos (auto-impostamente) fazer uma reflexão sobre nossas escolhas, com o autoquestionamento, a auto-observação e um direcionamento para livrarmo-nos do lodo do senso comum. E para contribuir com este argumento, cito um pensamento de Sartre[6], representante do existencialismo francês e contemporâneo de Camus:
“o homem nada é além do que ele se faz.” (p. 25).
Ou seja, o homem se define pelos seus atos. Sísifo escolhe seguir com sua tarefa, apesar do tormento do seu castigo. E Camus complementa, afirmando:
“esse mito só é trágico porque seu herói é consciente.” (p. 139).
Mas trazendo a questão para nossa atualidade, é fundamental ponderar que nem eu, nem você somos Sísifo. Por um lado, as ‘pedras’ que muitas vezes carregamos incansavelmente cansam e nos causam sofrimentos; por outro lado, continuar nessa peleja inconfortavelmente sozinhos pode não ser a única opção. E sobre isto, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro Sociedade do cansaço[7] considera:
“o cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando.” (p. 71).
Isso, em grande medida, apequena o indivíduo e esgota suas forças.
A cooperação humana, neste caso, talvez seja das nossas maiores potências. Não somos super-heroínas, nem super-heróis ou personagens mitológicos. Somos humanos, falíveis e ao mesmo tempo dotados de virtudes como a amizade (philía), o compartilhamento (o contar com) e a prudência (uso do logos). Por isso mesmo, se e quando a ‘pedra’ pesar e impedir/angustiar/fazer sofrer, pensemos em pedir ajuda. Ao admitir isso, já demos um ‘salto’ de autenticidade enquanto animais racionais. Não é nada absurdo (positivamente) se abrir para esta possibilidade.
Neste sentido, novamente trago o filósofo sul-coreano, agora a partir do seu livro O espírito da esperança contra a sociedade do medo[8], onde ele afirma que:
“A angústia estreita radicalmente o campo das possibilidades, dificultando assim o acesso ao novo, ao que ainda-não-é. Já por essa razão, ela se opõe à esperança, que aguça o senso do possível e inflama a paixão pelo novo, pelo totalmente diferente”. (p. 126).
[…]
“A esperança é aberta, vai para o aberto.”. (p. 132).
Han fala aqui da abertura que a esperança carrega em si: para o que virá. A esperança começa com o páthos do novo. Por isso é absolutamente relevante ‘deixar os braços livres’ e ‘abrir espaço’ para o novo, para o diferente do que é, do que está e do que se tem. Um outro ponto de atenção é sobre o respeito aos nossos limites e não carregar uma ‘pedra’ que não suportamos, pois se insistirmos neste fardo, vamos nos exaurir e adoecer (física e psiquicamente). É preciso entender que TODOS temos limites. Por isso a pergunta que propus no título deste artigo: quais ‘pedras’ vamos abandonar e quais vamos carregar adiante? A psicanálise nos ensina que para algo novo surgir/ocupar espaço é necessário abrir espaço e assim deixar vir/entrar este novo/diferente.
E já ao final do ensaio, Camus nos diz que:
“Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla seu tormento. No universo que repentinamente recuperou o silêncio, erguem-se os milhares de vozes maravilhadas da Terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite”. (p. 140)
O filósofo usa aqui os ciclos da natureza (dia, noite, sol, sombra) e eu destaco, neste ponto, a nossa impotência diante de eventos/acontecimentos/fenômenos que nos escapam e não há nada que possamos fazer sobre isto, exceto o modo como encaramos, entendemos e interpretamos. O que importa é a nossa forma de pensar o que nos ocorre e não o fato em si.
Ao final do ensaio, Camus nos fala que:
“a rocha ainda rola. […] Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo”. (p. 141).
O pensador usa a ‘imagem’ alegórica de Sísifo ao pé da montanha. Ou seja, um recomeço (ou não). Um novo, com toda a possibilidade nele contida.
O Mito é principalmente um ensaio sobre o absurdo (para mais e para menos). Mas absurdo de quê? De fazer coisas despropositadas (para si e para o outro)? De escolhas incrivelmente absurdas? Por quê? A quem interessa? São questões que não se esgotam e problematizam o tema. Lembremo-nos do que Sartre nos ensina:
“Por existencialismo, entendemos uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana”. (p. 20).
[…]
“O homem está condenado a ser livre”. (p. 26).
Sigamos – montanha acima e montanha abaixo – reflexivamente, com nossa capacidade livre de escolher, de pensar e de agir autenticamente. Tentando viver em ataraxia, porque a vida é já e agora. O ‘Sísifo’ é qualquer um de nós, com nossas ‘pedras’ e nossas escolhas.
E para encerrar este artigo, deixo uma homenagem à Gal Costa, na potente canção Divino maravilhoso[9]:
“Atenção ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção, menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridãoAtenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão, uau!É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte.”
Para cantar bem alto e exorcizar nossos temores e seguirmos firmes adiante. Porque a vida é já!
REFERÊNCIAS
[1] Compositores: Antonio Carlos Belchior / Jose Luiz de Franca Penna
Letra de Comentário a respeito de John © Ubc
[2] Homero. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
[3] Almeida Júnior, José Benedito de. Introdução à mitologia – São Paulo: Paulus, 2014.
[4] Nasce em 7 de novembro de 1913 em Mondovi, na Argélia. Morre em 4 de janeiro de 1960, aos 46 anos em Villeblevin, França. Em 1957 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra. Durante a Segunda Guerra, participou do movimento de Resistência na França.
[5] Camus, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch – Rio de Janeiro: Record, 2014.
[6] Sartre, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
[7] Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
[8] Han, Byung-Chul. O espírito da esperança: contra a sociedade do medo. Tradução de Milton Camargo Mota. Petrópolis, RJ: Vozes: 2024.
[9] Compositores: Gilberto Passos Gil Moreira / Caetano Emmanuel Viana Telles Veloso
Letra de Divino, maravilhoso © Uns Produções Artísticas Ltda, Gegê Edições Musicais Ltda.
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