Porque Gustavo se foi

 

Parte I

Foi a partir de uma postagem em uma rede social que descobri o fatídico. Uma amiga que tenho há mais de 40 anos posta uma foto de Gustavo, aquele que fora seu primeiro namoradinho de adolescência, acompanhado de um texto eloquente, vivaz, sedutor e nostálgico. Julguei que seria cedo para as brevidades da nostalgia, mas era, sim, um epitáfio particular do desencontro. Gustavo havia partido, um pouco além dos 40 anos. A foto apresentava um rosto bastante masculino, caminhando para a meia idade, barba com aquele princípio de brancura, que já começa a atingir a todos nós. Brevidade: não mais ao camarada.

Quando do peso da postagem, veio-me à lembrança do próprio, ao meu lado, sentado, escrevendo em um cartão, uma sequência de “Eu te amo” que ele destinaria à Juliana – essa amiga. Ano de 1994, o único ano em que não estudei no Bretanha, pois tinha ido estudar no ABEU por causa da bolsa de estudos de convênio com o trabalho de meu pai. Fomos todos, eu e meus irmãos. Uma mudança absurda. Nessa escola, conheci Gustavo. E foi apenas esse ano de convívio em si. Pouco, mas, sim, capaz de mover à escrita de um texto. Isso, porque Gustavo se foi. Fora um dia em que conversáramos sobre Juliana Rebouças. Não lembro do contexto em que se conheceram, mas àquela época eram comuns as festas chamadas de Americanas e também eram comuns essas festas acontecerem no prédio de Juliana, em frente à praça Manuel Madruga, na Ilha. Ela de volta, a Ilha.

Pensei que fosse levar mais tempo para escrever sobre a Ilha do Governador, desde que de lá saí, vivo um sentimento de não lugar, de não total pertencimento aos espaços em que estive. Foram todos eles, em particular comoção, incapazes de substituir a Ilha de meu passado; e agora, porque Gustavo se foi, tudo me volta como de um atropelo. Mando mensagem para Rebouças, há não mais do que dois anos tínhamos reestabelecido contato, prometido reencontro, apresentei virtualmente meus filhos, meus dois. Ela, um pouco menos de idade do que eu, havia se tornado uma mulher vistosa, de presença, magnética, alegre e que transborda a lucidez dos espaços em que se encontra. Conversamos sobre nossos irmãos, nossos pais. Nosso encontro de vida se dá pelo princípio de nossa infância. Nossas mães se revezavam em nos pegar na escola, Nossa Senhora da Ajuda, morávamos perto, então estávamos juntos sempre no carro, indo e voltando. E foi assim por anos. Essa memória de ida e vinda com ela está aqui, em forma de calor e nostalgia, impregnando a linearidade do que penso no momento em que escrevo. Gustavo não morava mais no Brasil. Juliana também chegou a morar fora do Brasil. Eu, que sempre estive aqui, nunca mais voltei à Ilha para residir. Porque Gustavo se foi, eu me vou à Ilha.

Frequentei durante um período a casa de Gustavo. Havíamos nos proposto, junto com alguns amigos da sala, Allan, Fernanda, eu, Victor e mais alguns outros, de nos gravarmos tentando fazer um programa de humor. Se eu disser que não ficou hilário, estaria mentindo. Foi uma experiência maravilhosa. Nos divertimos muito. O prazer estava no gravar e depois no rever, no quarto dele, onde lembro havia um quadro 3D, algo que nunca tinha visto até aquele momento. Uma dia, logo depois das gravações, ele me apresentou Crash Test Dummies, em especial, uma música chamada MM MM MM MM, em que o vocalista, com profunda voz nasalada, mimetiza e entoa o balbucio de emes. A música é maravilhosa. Até hoje, ouvi-la é resgatar Gustavo. Inclusive, outro amigo daquela época, Rafael, foi quem me apresentou Pearl Jam, daí escutávamos Daugther, Animal, Go, com Victor foi o Spin Doctors, com Poket Full of Kriptonita. Dali segui, com duas outras pessoas da turma de primeiro ano – estávamos todos à oitava série, hoje nono ano – para Raimundos, em seu álbum de estreia. Eu já com uma coleção de lps do Scorpions em casa, uma fita do Sepultura (Chaos AD) e um CD do Kiss (Kiss Alive II) não poderia ter seguido outro caminho. A muito de meus alunos, que de uma maneira também me ajudam a resgatar esse márcio do passado, afirmo que no meu subúrbio houve muito do rock e depois do heavy metal. Hoje, inclusive, tenho algo do samba no meu sangue. Tornei-me da música como um todo.

Porque Gustavo se foi, descobri que ele virara esportista profissional. Não morava mais no Brasil, estava casado, pai, tinha uma vida organizada e plausivelmente saudável para um lutador de Jiu Jitsu. Como um homem desse poderia, assim, partir? Depois de saber o todo de seu acometimento, o sentimento de que é impossível deflagrar vitória constante à vida me consumiu. Porque Gustavo se foi, certo também de que todos iremos. Entre o ir e o devir, o ver. Memórias me retornam: no ABEU descobri pesares que não tive no Bretanha. Um ano soberbo. Foi também a primeira vez que recebi um elogio genuíno de uma menina: Flávia seu nome. Guardo com carinho até hoje suas palavras. Impossível não guardar. Foi ali também que descobri um talento que me valeria mais tarde: a propensão à amizade com meninas. Passei também a uma amizade com constância de sorriso com outros dois meninos dessa mesma turma: Marcio e Marcos. Era uma tríade: Marcio, Marcio e Marcos. A gente ria só de estar juntos. Só que o Abeu para mim foi apenas aquele ano. Ia e voltava a pé para casa. Sempre acompanhado. Morava na vila 76 da Manuel Pereira da Costa, voltava com uma menina que morava na vila 28. Na mesma rua moravam Victor e Rafael. Essa confluência de memórias, saudades, infinitudes particulares advêm porque Gustavo se foi.

O fato de Gustavo ter ido, sempre com o sentimento de que não deveria mesmo ser a vez dele, que me vem à cabeça a sensação de que ele, pessoa íntegra, deveria aqui ficar, pelo filho, pela esposa, por sua história a ser escrita em nanquim árabe. Parece carro zero km e abastecido parado no sinal verde. O carro ronca. Seu motor tem exuberância de potência. Só que ele não vai. Ele não consegue acelerar mais. Não engata a marcha. E o sinal, ansiosamente verde, em constância, não se agracia mais àquele carro andar. Juliana me manda outra foto: era o convite para a comemoração da Missa de sétimo dia dele, dia 29 de Junho, na Ilha. “Márcio, você vem?”

Eu custo a responder. Mas retorno a mensagem, no fim, apenas porque Gustavo se foi.

 

MÁRCIO CALIXTO

 

 

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.

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