Horizonte urbano

Há quase duas décadas, havia uma tela na varanda do meu apartamento no Grajaú, entre meus olhos e a paisagem.

A tela, um dia, protegeu a criança de riscos fatais e o coração dos pais dos sustos maiores. Mas desenhava contra a paisagem diversos mini losangos, como se a pedra, a mata da Reserva e o verde das árvores fossem uma foto de um quebra-cabeças.

Só se podia ver a imagem lisa, plana, fragmentada entre as brechas dos tais losangos, atravessando-se uma câmera entre os pequeninos espaços ou fixando-se a atenção nos detalhes.

Tiraram a rede dia desses.

E a vista que eu amo, que não me permitiu deixar a casa, tal é esse amor, abriu-se inteira num quadro amplo, absurdamente verde, realçada pelo sol implacável que nos mata de calor mas nos alimenta, com beleza, a alma.

Foto: Ana Gosling

É um detalhe somente. Mas promove alterações profundas.

E eu, que ando me sentindo presa nos problemas que tenho vivido, eu, que, às vezes, preciso de fôlego no meio da noite, ganhei a amplitude de um horizonte, a liberdade de esticar a mão e debruçar o corpo para além dos limites em que vivia. É psicológico, eu sei. Mas é libertador.

Paradoxalmente, a liberdade me impõe limites, cuidados com os quais não me preocupava antes de tirar a tela da varanda e as grades dos quartos. Mas e daí? Estou mais próxima de tudo, avanço centímetros em relação às árvores sob minha varanda, quase posso tocar, do meu quarto, o parapeito da varanda do vizinho.

Sinto-me mais integrada ao mundo. Minhas conexões mudaram. Sinto-me mais livre. Não preciso abstrair nem grades, nem telas, nem medos. Preciso lidar, ao mesmo tempo, com o que me assusta e com o que me encanta.

Mas…quer saber? Viver não é exatamente isso?

ANA GOSLING

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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