CONTO DE QUINTA: Violeta

 

VIOLETA

O louco é estrangeiro em sua própria pátria.

Livia Garcia-Roza

 

Eu, Violeta Pinheiro do Nascimento Vasconcelos, estava lá quando ela chegou. Eu fui parte desse nascimento, ela saiu de dentro de mim. Eu a expeli. Ela nasceu antes do tempo e me surpreendeu. Eu e a médica não esperávamos que ela nascesse antes do tempo. Na maternidade, fizeram o teste do pezinho e muitos outros exames. Ela era ou parecia ser saudável.

Eu a culpei pela fuga do Jerônimo. Eu a acusei de ter deixado o portão aberto. Eu lhe disse coisas medonhas no dia em que o Jerônimo desapareceu. Uma semana depois ela me mostrou uma reportagem no jornal sobre um cachorro que tinha voltado para casa sete meses após ter sumido.

Ela chegou sem avisar. Tocou a campainha, eu a recebi com um sorriso artificial. Ofereci um lanche. Ela comeu com gosto a torta de nozes, sua preferida. Ela perguntou se podia pegar outra fatia. Ela deixou cair migalhas de torta no carpete. No carpete. Tapete novo. Ela nem se deu conta de que sujava o carpete enquanto comia. Ela fazia cerimônia. Aquela não era mais sua casa. Seu rosto deixava transparecer que ela não se sentia confortável. Ela não me visitava com frequência, e eu não me importava com isso. A gente se falava pouco pelo telefone. Eu pensei em pedir que ela limpasse o chão sujo de torta. De pedaços milimétricos de torta. De torta. Nozes. Eu tentei fazer de nosso encontro algo rotineiro, exatamente como os encontros entre mães e filhas deveriam ser. Eu fracassei nessa tentativa. Nós nos despedimos de modo contido. Tivemos dúvida se beijinhos no rosto seriam adequados. Dissemos apenas tchau.

Nós chafurdamos no mesmo pântano. E tivemos a pachorra de permanecer nele mais tempo do que seria desejado. Nós ignoramos os acenos daqueles que talvez pretendessem nos tirar da lama. Nós procuramos cultivar nosso jardim. Tentamos plantar jasmineiros e roseiras. Os girassóis também sempre nos interessaram. Nosso objetivo sempre foi vencer as pragas, eliminá-las. Exterminá-las. Procuramos. Tentamos

Ela fez um aborto. Me contou que tinha feito o aborto. Disse que não queria falar, mas falou. Não entrou em detalhes. Imagino que deve ter sido algum método primitivo, tosco, incerto e perigoso. Ela deve ter corrido risco de vida. Que tipo de mãe ela seria? Ela não teria a capacidade de ser mãe. Ela não sabe o que é ser mãe, não sabe o que é ser gente. Não sabe falar francês apesar das aulas da infância e da adolescência. Não sabe nada do que precisa saber. Ela não sabe fazer cálculos elementares nem preencher cheques…

Eram três e meia da tarde quando a enfermeira Gilda abriu a porta pelo lado de fora despejando toda a sua eficiência corpulenta dentro do quarto.

̶  Violeta, querida, você está dormindo? Acorda, meu bem. Tá na hora do seu remedinho…

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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