CONTO DE QUINTA: Vinte cinco nove

Imagem: Freepik/tigristiara

VINTE CINCO NOVE

 

O ano é 2059, não se esqueça disso. Foram essas as últimas palavras do meu chefe depois de ele ter me explicado todo o projeto. Parece que a solicitação tinha partido lá de cima (ele reforçou a informação com o dedo indicador da mão direita apontado para o alto quando me passou a tarefa). O novo dono da revista cismou que queria uma matéria sobre como estaria o mundo daqui a 35 anos. Bem, eu sou o mais novo da redação (em tempo de casa) e não podia recusar um pedido do chefe. Na verdade, acho que foi mais uma ordem. Transmitida com educação mas uma ordem. Seja como for, nunca foi do meu feitio desrespeitar algo chamado hierarquia. Mais tarde, refletindo melhor, acabei me sentindo orgulhoso de ter sido o escolhido. Afinal, se o doutor Santiago julgava aquilo tão fundamental… De qualquer forma, foi até engraçado essa tarefa ter surgido justamente nessa época. Um dia antes de receber a solicitação, eu havia lido no jornal alguma coisa a respeito de como tinham sido furadas as previsões de um filme lançado em 1989 sobre o ano de 2024. Nesse caso, o futuro já tinha se tornado presente e não era lá muito semelhante àquilo mostrado três décadas e meia antes. Quer saber? Apesar de mais conformado continuava a achar a coisa toda meio sem graça e sem sentido, inútil até. Especialmente para o big boss, o maior interessado na brincadeirinha. Todo mundo na revista sabia muito bem que ele já tinha mais de 80 anos (embora aparentasse menos). Nesse estágio da vida, já vai ser muita sorte se ele conseguir saber como será o mundo daqui a uma década, essa é que é a realidade. Não é só uma questão de estar vivo. É preciso, além disso, estar com saúde, enfim, no gozo de suas faculdades mentais, pra usar uma expressão cortês apesar de um tanto clichê. Enfim… Não tinha mais tempo a desperdiçar com especulações vazias então li alguns livros, conversei com especialistas, entrei em páginas sugeridas pelo Google e fiz anotações. Nutri-me de uma dose substantiva de otimismo e decidi que o mundo futurístico seria um lugar bom pra se viver. Assistindo a todas as besteiras que o homem tem feito ultimamente, não é tão fácil ter essa esperança, mas vá lá, a imaginação (pelo menos ela) (ainda) é livre. Assim, doenças graves não seriam incuráveis em 2059. Transplantes, vacinas, tratamentos, remédios, a medicina continuaria a evoluir cada vez mais, elevando a expectativa de vida humana às alturas. Seria bastante razoável supor que alguém de 80 e poucos tivesse a chance real de conseguir mesmo saber como estaria o mundo 35 anos mais tarde. Além disso, a automação e o avanço tecnológico seguiriam seu curso em marcha acelerada. Também não dá pra projetar o futuro sem imaginar algo parecido com o que nos é apresentado pelo cinema de ficção científica: naves espaciais, velocidade de informação, robôs inteligentes, aparatos tecnológicos incríveis, computadores falantes, câmeras onipresentes e oniscientes. O texto tomava corpo, e eu me sentia entusiasmado. Perto do fim, um pensamento infeliz me perturbou: já estava com 58 anos e talvez não vivesse pra conferir os acertos de minhas elucubrações. Foi quando reparei em Renato, meu filho de 6 anos. Sentado no chão, ele mexia concentrado em seu tablet. Retomei o trabalho sem perder tempo, o prazo dado por meu chefe estava se esgotando.

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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